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O ano de 2019 vai terminando sem deixar muita saudade. Foi um ano de muitos retrocessos políticos e sociais, muitas lutas, perdas e poucos ganhos. Muitas notícias ruins, cortes de verbas para cultura e educação,  que de tão ruins pareciam ser de outros tempos. Por isso mesmo, a equipe do Barulho Curitiba resolveu escolher algumas músicas antigas brasileiras que poderiam ter sido escritas em 2019. 

1) ‘Toda forma de poder’, Engenheiros do Havaí (1986)

“Toda forma de poder” é uma música da banda Engenheiros do Hawaii, lançada em 1986, no álbum “Longe Demais das Capitais”. A letra, de cunho político, faz uma crítica aos governos e, como diz o próprio título, ataca “toda forma de poder”. “E o fascismo é fascinante/ Deixa a gente ignorante e fascinada/ É tão fácil ir adiante e se/ esquecer/ Que a coisa toda tá errada/ Eu presto atenção no que eles dizem/ Mas eles não dizem nada”

2) ‘Que País é esse?’, Legião Urbana (1987)

A música composta por Renato Russo, em 1978, foi criada quando o compositor ainda fazia parte da banda de punk rock Aborto Elétrico, mas foi lançada e deu nome ao álbum do Legião Urbana lançado em 1987. ‘Que país é esse’ foi eleita para a lista das 100 Maiores Músicas Brasileiras, segundo a revista ‘Rolling Stone’, e faz uma crítica social ao país, de norte a sul, em todas as classes sociais, que pode ser aplicada perfeitamente em 2019. A música também fez uma previsão de que viraríamos piada no Exterior, o que aconteceu no ano que passou. “Terceiro mundo se for/ Piada no exterior/ Mas o Brasil vai ficar rico/ Vamos faturar um milhão/ Quando vendermos todas as almas/ Dos nossos índios num leilão”. Várias outras músicas do Legião Urbana são muito atuais, como ‘Índios’ e ‘Geração Coca-Cola’.

3) ‘Estado Violência’, Titãs (1986)

Um Estado autoritário e violento, que é indiferente à sua vontade. Um Estado que usa da força para impedir protestos e que acaba por punir aqueles que menos favorecidos. Parece muito com algumas situações vividas em 2019. “Sinto no meu corpo/ A dor que angustia/ A lei ao meu redor/ A lei que eu não queria/ Estado Violência/ Estado Hipocrisia/ A lei não é minha/ A lei que eu não queria/ Meu corpo não é meu/ Meu coração é teu/ Atrás de portas frias/ O homem está só”. A música é do álbum ‘Cabeça Dinossauro’, terceiro álbum de estúdio dos Titãs, lançado em 1 de junho de 1986. Aliás, várias músicas desse álbum cabem perfeitamente no ano que acaba, como ‘Polícia’. 

 

4) ‘Até quando esperar’, Plebe Rude (1985)

Impossível não perceber que, com o aumento da desigualdade e do desemprego, em 2019 o número de moradores de rua aumentou nas grandes metrópoles, são bem mais que em 1985, quando a banda Plebe Rude lançou a música ‘Até quando esperar’. Mas o tempo só reforça a crítica social da música, que analisa o comportamento dos bem “abastados” diante de um problema que é seu também. “E cadê a esmola que nós damos/ Sem perceber que aquele abençoado/ Poderia ter sido você/ Com tanta riqueza por aí, onde é que está/ Cadê sua fração/ Com tanta riqueza por aí, onde é que está/ Cadê sua fração”.

5) ‘Podres, Poderes’, Caetano Veloso (1984)

‘Podres Poderes’, de 1984, traz um Caetano Veloso revoltado e a faltas de revolta do povo. Na letra, Caetano cita os ditadores da América Católica, os burgueses, os paisanos, os capatazes e outras classes que estão preocupadas somente no bem próprio. “Será que nunca faremos senão confirmar/ A incompetência da América católica/ Que sempre precisará de ridículos tiranos/ Será, será, que será?/ Que será, que será?/Será que esta minha estúpida retórica/ Terá que soar, terá que se ouvir/ Por mais zil anos”.

6) ‘Diário de um Detento’,  Racionais MC’s  (1998)

‘Diário de um Detento’ é uma canção de rap do grupo Racionais MC’s, escrita por Mano Brown em parceria com o ex-detento Josemir Prado, o Jocenir. A letra da música aborda a rebelião do presídio do Carandiru, ocorrida em 2 de outubro de 1992, quando 111 presidiários foram mortos pela polícia em evento que ficou conhecido como Massacre do Carandiru. A música, lançada em 1998, foi classificada em 52º lugar na lista das 100 maiores músicas brasileiras publicada pela revista ‘Rolling Stone’. Dados do início de 2019 do Ministério da Segurança indicam há hoje 704.395 presos para uma capacidade total de 415.960, um déficit de 288.435 vagas. Se forem contabilizados os presos em regime aberto e os que estão em carceragens da Polícia Civil, o número passa de 750 mil. A letra diz: “Ladrão sangue bom tem moral na quebrada/ Mas pro Estado é só um número, mais nada/ Nove pavilhões, sete mil homens/ Que custam trezentos reais por mês, cada”

7) ‘Camila’, Nenhum de Nós (1988)

Nem todo mundo sabe, mas a música ‘Camila’, cantada em coro pelos jovens dos anos 80, é sobre violência psicológica e física contra a mulher. É sobre uma adolescente de 17 anos, colega de escola dos integrantes da banda, que estava em um relacionamento abusivo e sofria violência emocional e física. Foi lançada em 1988. “Depois da última noite de chuva/ Chorando e esperando amanhecer, amanhecer/ Às vezes peço a ele que vá embora/ Que vá embora/ Camila/ Camila, Camila/ Eu que tenho medo até de suas mãos/ Mas o ódio cega e você não percebe/ Mas o ódio cega”. Os casos de violência contra a mulher registraram, no Paraná, crescimento significativo no ano passado. Segundo dados do 13° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o crescimento verificado em 2018, na comparação com 2017, foi de 14,1%. O estado registra, em média, um caso de violência contra a mulher a cada 24 minutos. O cálculo inclui os casos de homicídios (dentro dos quais estão inclusos os feminicídios), de violência doméstica (lesão corporal dolosa), estupro e tentativa de estupro. Mudou muita coisa?

8) ‘A Cidade’, Chico Science e Nação Zumbi (1993)

O álbum ‘Da Lama ao Caos’, de 1993, é todo uma crítica social ao capitalismo das grandes cidades. A música ‘A Cidade’ vai ainda além, mais na veia, mostrando o difícil dia-a-dia do povo e da vida cotidiana. “Cavaleiros circulam vigiando as pessoas/ Não importa se são ruins, nem importa se são boas/ E a cidade se apresenta centro das ambições/ Para mendigos ou ricos e outras armações/ Coletivos, automóveis, motos e metrôs/ Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs/ A cidade não pára, a cidade só cresce/ O de cima sobe e o de baixo desce”.

9) ‘Toda forma de amor’, Lulu Santos (1988)

Em tempos de intolerância, o amor é sempre a melhor resposta. E quando Lulu Santos fez ‘Toda Forma de amor’, em 1988, certamente não imaginou que ainda em 2019, o Brasil ainda estaria vivendo uma luta pelos direitos dos LGBTIs, que o preconceito e a violência ainda estaria vivo. Tanto é que a música virou um hino, tocada inclusive em paradas da diversidade pelo país todo. 

10) ‘Apesar de Você’, Chico Buarque (1970)

Lançada em 1970, surpreendentemente, ‘Apesar de Você’ não sofreu a censura dos ditadores. Só foi proibida no ano seguinte, quando Chico, em uma entrevista, admitiu que o “você” a quem se dirigia na música era o presidente Médici. A canção voltou a ser liberada em 1978. Na sua letra traz uma manifestação de desabafo na insatisfação com o governo de então e, ao mesmo tempo, uma convocação para a luta pela reconquista da liberdade, da democracia. Não é à toa que voltou a ser cantada em diversas manifestações, um ode à democracia, tão ameaçada durante o ano que termina. “Hoje você é quem manda/ Falou, tá falado /Não tem discussão”.

11) ‘Assim Assado’, Secos & Molhados (1973)

Uma canção genial do grupo Secos & Molhados, liderado por Ney Matogrosso, lançada em 1973. Genial porque é cheia de interpretações, o Guarda Belo (do Manda-Chuva, de Hannah-Barbera) confunde os menos avisados. A letra da canção conta uma história: Um homem idoso caminha de madrugada e é encontrado pelo Guarda Belo, que identifica a “cor do velho” e resolve matá-lo, porque “não acredita” em tal cor. Muitas análises afirmam que a cor é ‘vermelho’, que simboliza o comunismo, em uma crítica ao comunismo. Mas hoje também serviria para identificar a cor negra. Afinal, quantos negros, inclusive crianças, foram mortos neste ano, pela polícia, em favelas do País? Como não lembrar da Marielle? Ela foi morta em 2018, mas a investigação seguiu durante todo o 2019. 

12) ‘Aluga-se’, Raul Seixas (1980)

Ele morreu em 1989 aos 44 anos, mas a sua obra vive e cada vez mais forte. Assim como Caetano, Chico e Legião Urbana, Raul tem diversas músicas compostas há mais de 30 anos que se encaixam perfeitamente no que viveu o Brasil em 2019. A nossa escolhida foi ‘Aluga-se’, lançada em 1989, por ser uma crítica ferrenha aos mandos e desmandos no meio ambiente. E  em 2019, tivemos tristes surpresas, queimadas, óleos nas praias, polêmicas na Amazônia. “Os estrangeiros eu sei que eles vão gostar/ Tem o Atlântico tem vista pro mar/ A Amazônia é o jardim do quintal/ E o dólar dele paga o nosso mingau/ Nós não vamo paga nada/ Nós não vamo paga nada/ É tudo free/ ‘Tá na hora agora é free/ Vamo embora”. 

 

13) ‘O Bêbado e o Equilibrista’, Aldir Blanc e João Bosco (1979)

A canção foi interpretada por Elis Regina em seu LP ‘Essa Mulher’, de 1979. Tornou-se um hino informal sobre o período da anistia e do declínio da Ditadura Militar no Brasil, sendo mesmo chamada de Hino da Anistia, ainda que tenha sido composta antes da aprovação da Lei da Anistia, de 1979.A letra possui diversas referências de eventos e personalidades ligadasà Ditadura Militar e a anistia concedida para opositores e para os próprios militares. Nos versos “Choram Marias e Clarisses”, Bosco cita as viúvas Maria, mulher de Manuel Fiel Filho, e Clarisse Herzog, esposa de Vladimir Herzog. Os dois morreram nos porões do DOI-CODI. O mesmo Herzog que tem sido criticado pelo presidente Jair Bolsonaro, que já deu várias declarações de apoio à ditadura durante 2019.

14) ‘O Beco’, Paralamas do Sucesso (1988)

A música ‘O Beco’ fala da violência e do ódio que desde que aquele 1988 cresce no Brasil e não incomoda às classes mais abastadas, desde não chegue nela. “No beco escuro explode a violência/ No meio da madrugada/ Com amor, ódio, urgência/ Ou como se não fosse nada/ Mas nada perturba o meu sono pesado/ Nada levanta aquele corpo jogado/ Nada atrapalha aquele bar ali na esquina/ Aquela fila de cinema/ Nada mais me deixa chocado/ Nada!”

15) ‘Panis Et Circenses’, Gilberto Gil e Caetano (1968)

Lançada em plena ditadura militar no Brasil, a letra da música é interpretada como uma crítica aos valores culturais da sociedade da época que reprimiam as transformações e mudanças aspiradas pela juventude. As transformações reclamadas não seriam exclusivamente políticas, mas também de referências estéticas e culturais. Algo muito atual em tempos de constantes cortes de verbas para cultura e educação. “Mandei fazer de puro aço luminoso um punhal/ Para matar o meu amor e matei/ Às cinco horas na avenida central/ Mas as pessoas da sala de jantar/ São ocupadas em nascer e morrer”