Um dos melhores álbuns de todos os tempos completou 30 anos na última quinta (21): Like a Prayer. O quarto trabalho de inéditas de Madonna veio à tona como bem manda a cartilha seguida pela cantora, desde a sua estreia em 1983: cercado de polêmicas e com uma inovação sonora poucas vezes vista antes de sua concepção.

Sem sombra de dúvidas, Madonna foi a figura feminina mais importante no showbiz, entre as décadas de 80 e 90 (continua sendo, aliás). Sempre questionadora e controlando a carreira com pulso firme, a cantora buscou, em todas as fases de sua carreira, estipular diferentes rumos e contextos para inserir as suas ideias musicais. Apesar dos seus dois primeiros álbuns possuírem em sua gênese, o que há de melhor e pior na construção da música jovem (um pop dançante, vibrante, hedonista e sem maiores preocupações), a partir de True Blue, lançado em 1986, já era possível perceber a inquietação da popstar em estabelecer canções que ultrapassassem a brevidade e fizessem alguma diferença dentro do cruel e rotativo cenário do entretenimento.

Antes mesmo do álbum Like a Prayer ganhar a luz dos holofotes, Madonna já estava cercada de acontecimentos que ajudaram a impulsionar o interesse pelo trabalho: a sua separação do ator Sean Penn, em meio a boatos de agressões físicas, ganhou os tablóides sensacionalistas do mundo todo, assim como o polêmico clipe da faixa-título que, colocando num mesmo caldeirão questões raciais, feministas e sociais, causou um mal-estar tamanho que levou a Pepsi a cancelar um contrato milionário que havia estabelecido com a cantora (e cuja música “Like a Prayer” seria tema de uma peça publicitária da companhia).

O clipe de “Like a Prayer” é um dos primores do conceito audiovisual surgido com o aparecimento da MTV, no início dos anos 80: Madonna interpreta uma mulher que presencia um assalto cometido por um grupo de jovens brancos, e que culmina com o assassinato de uma garota. Um rapaz negro tenta socorrer a vítima, mas é confundido com um dos assassinos e termina preso. Em meio ao desenvolvimento do roteiro, Madonna aparece (em cenas que parecem esparsas), misturada a um coral de igreja repleto de mulheres negras, cantando em meio a algumas cruzes em chamas (o que emula a filosofia do grupo terrorista Ku Klux Klan, conhecido por defender ideias reacionárias e a supremacia branca), e culmina com dois momentos cruciais: o encontro de Madonna com o que seria um Jesus Cristo negro (representado pela mesma figura do rapaz preso no início do clipe), que tem os seus pés beijados pela protagonista; e o momento em que a cantora fere as próprias mãos com um punhal, demonstrando ferimentos iguais aos de quando Jesus foi crucificado.

Em meio à discussão levantada sobre o vídeo (que muitos diziam tratar sobre intolerância religiosa, preconceito racial, de gênero e social, enquanto outros alegavam a abordagem do exato momento em que uma mulher atinge o seu primeiro orgasmo), Madonna, recém-separada e no auge de sua maturidade pessoal e profissional, resolveu discutir todos os temas que lhe eram caros à época, através do novo álbum: tratou do empoderamento feminino (através da música e do clipe de “Express Yourself”), falou sobre relacionamento abusivo e agressões físicas (“Till Death Do Us Part”), abuso paternal e emocional (em “Oh Father”, uma de suas mais belas composições), separação (“Love Song”, em parceria com o cantor Prince), a dificuldade em superar perdas (“Promise to Try”, feita em homenagem à sua mãe, que faleceu quando a cantora ainda era criança), e os problemas em encarar as agruras de uma vida adulta e solitária (em “Dear Jessie”). Tudo isso misturado em um caldeirão sonoro, que misturava pop, rock, gospel, soul, funk, pitadas de R&B e música latina, que nunca ficou aquém do que convenhamos chamar de “bom gosto”.

Até porque, “Like a Prayer”, o álbum, é uma peça rara. Como alguns críticos e jornalistas disseram, foi quando o pop se aproximou da arte. Para outros, foi o trabalho musical mais importante realizado por uma artista do sexo feminino. Mas foi principalmente quando Madonna conseguiu compreender, atingir e popularizar o que, muito provavelmente, ela queria, desde o momento em que sentiu que seu caminho não seria outro além da carreira artística: poder realizar uma obra com sucesso e respaldo por parte do público e da crítica, e que pudesse ter a capacidade de mudar a vida das pessoas. E Madonna conseguiu realizar tudo isso através deste trabalho conceitual e primoroso.

Vejamos: em meio a toda a efervescência social dos últimos anos, incluindo aí as discussões acerca do feminismo e da igualdade de gênero, combate ao racismo, machismo, violência contra mulher, busca pela quebra de preconceitos e a necessidade de se buscar um equilíbrio entre todas essas partes, nada disso surgiria se algumas ideias e sementes plantadas ao longo do tempo não germinassem, por assim dizer. E todos nós sabemos que se não fosse a arte e todas as suas ramificações, a construção por um mundo melhor não seria possível. Muitas dessas ideias e sentimentos surgiram a partir da audição deste álbum de Madonna, por milhares de pessoas, lá no final dos anos 80, e reverberam hoje mais do que nunca. E a força que este trabalho emana dificilmente será apagada pela constante engrenagem social do mundo e da música. Para Madonna, só podemos dedicar um muito obrigado (a), por todas essas possibilidades criadas há exatos 30 anos. E para todos os detratores, não só da obra dela, mas como das mulheres em geral, fica apenas a constatação: o álbum mais importante da história da música pop foi concebido por uma mulher. E não há nada que faça essa parte da história ser apagada.