Frankin de Freitas – No Rebouças: antigas fábricas

Dentre os 75 bairros que hoje compõem Curitiba, poucos testemunharam tão de perto ou participaram tão decisivamente da história curitibana nos últimos dois séculos quanto o Rebouças.

Uma área descampada e com poucas propriedades rurais até meados do século XIX, o bairro se torna a partir da década de 1880, com a construção da Estação Ferroviária, o epicentro de uma série de transformações que ocorreriam no município. 

Protagonista de uma Curitiba moderna e imponente, o Rebouças foi o primeiro distrito industrial da cidade e, por muito tempo, também o coração da capital paranaense, o centro econômico da cidade, em torno do qual tudo orbitava. Isso até o período entre as décadas de 1940 e 1970, quando a guerra mundial, as crises econômicas, as mudanças tecnológicas e as políticas urbanas condenaram o local ao abandono, fazendo-o se tornar o que é hoje: um lugar de passagem, desprovido de sentido pela sua própria obsolescência funcional.

Toda essa história, que confere identidade e sentido à Curitiba que hoje conhecemos, está agora contada em detalhes no livro “Um Olhar Sobre o Patrimônio Industrial do Rebouças”, lançado na última semana e de autoria da arquiteta, professora e pesquisadora Iaskara Florenzano. Viabilizado pela lei de incentivo da Fundação Cultural de Curitiba e fruto de mais de uma década de levantamentos e análises, a obra vai além de ser apenas um relato histórico ou um testemunho arquitetônico. Trata-se, essencialmente, de um grito de desespero de alguém que tem acompanhado o desaparecimento da paisagem do Rebouças.

Nascida e criada numa espécie de chácara em Curitiba, nas proximidades da Rua Brigadeiro Franco e da Av. Pres. Kennedy, Iaskara recorda que desde sempre atravessava o antigo distrito industrial para chegar ao Centro. Da infância e adolescência, ainda guarda o cheiro do mate e do café torrado de algumas fábricas que ainda perfumavam a região nos anos 1980.

Àquela época os engenhos do mate, as cervejarias, as fábricas, os grandes armazéns e as vilas operárias já começavam a fazer parte do passado do local. Um processo de destruição que teve como um de seus momentos mais marcantes a demolição da fábrica da Matte Leão, empresa que projetou a capital paranaense, em evento assistido passivamente pela população curitibana em 2011. No lugar do que deveria ser patrimônio da cidade se ergueu um templo da Igreja Universal do Reino de Deus.

Agora, a luta da escritora é por chamar a atenção da sociedade para que se preserve o que ainda sobra do patrimônio industrial da região. “Queremos preservar. O afeto preserva, o uso preserva, mas essas áreas precisam de reconhecimento, tutela, proteção para que não desapareçam. O patrimônio não é meu, é da gente, então não podemos destruir. Mas ele me diz respeito, conta sobre mim e sobre o que vem depois da gente. Por isso empurramos para frente esse patrimônio, entregamos para quem vem depois”, afirma Florenzano.

A autora ainda relata que, desde que começou a pesquisar sobre o bairro, em 2011, cinco fábricas na região foram cadastradas como unidades de preservação. Em sua pesquisa de mestrado, porém, a arquiteta fez um levantamento mais preciso, demonstrando a urgência em se tratar do assunto. “De 292 lotes, 292 terrenos do meu recorte na pesquisa de mestrado, 87 deles abrigam patrimônio industrial com algum grau de recomendação de preservação e 34 têm alto grau de interesse de preservação”.

 

As indústrias como patrimônio da cidade 

Mas como uma fábrica abandonada, por exemplo, pode ser considerada um patrimônio de Curitiba?

Para compreender isso, é preciso um olhar histórico e sociológico, e não meramente estético. É que foi justamente em torno de fábricas onde as grandes cidades começaram a se formar e, geralmente, essas fábricas se instalavam em locais próximos a rios (para utilizar a água como força motriz ou mesmo para fazer o escoamento de produção e lançamento de dejetos) ou próximo de um trilho de trem. E o Rebouças já tinha tudo isso: o edifício da estação ferroviária foi construído em 1883 e o Rio Belém atravessa o bairro.

“Onde tinha uma fábrica começava uma cidade. Ao redor vinham os operários, armazéns, escolas, campinho de futebol e toda uma série de elementos que se desenvolviam a partir da industrialização. Sem aquela fábrica não se sabe o que seria aquela região. Essas fábricas, então, explicam a razão de existência das cidades, do surgimento e desenvolvimento delas”, explica Florenzano.

As fábricas, então, acabam por se consolidar mundialmente, especialmente a partir da década de 1970, como um patrimônio urbano e corrente das mais diversas sociedades, dizendo respeito ao dia a dia das pessoas. Ali está guardada a memória do trabalho, das pessoas simples, dos operários e dos trabalhadores. Quando uma fábrica vai ao chão, por outro lado, essas pessoas são apagadas da história, a memória delas é destruída. E, em última instância, também a nossa própria memória vai se perdendo, especialmente a partir do momento em que entendemos o Rebouças como sendo um dos bairros que confere identidade à Curitiba.

“Patrimônio confere identidade, diz quem eu sou, me coloca no mundo, no espaço, no tempo. Se eu não tenho patrimônio, a pré-existência, não sei o que veio antes de mim, que heranças recebi, e não sei para onde eu vou amanhã. Se apaga minha memória, não sei nem quem eu sou. E o Rebouças faz parte da nossa memória coletiva, tem toda essa importância, essa significação. Queria fazer o livro para contar sobre isso, pelo menos fica o registro. Mas é um grito de desespero também, porque estamos perdendo muito, vendo isso acontecer e não fazendo nada”, desabafa a arquitera.

 

‘Um lugar à espera e à deriva também’ 

Genius loci é um termo latino que fala sobre o ‘espírito de um lugar’, como entendiam os romanos. Modernamente, na arquitetura, trata de uma abordagem fenomenológica do ambiente e da interação entre lugar e identidade, relacionando-se ao conjunto de características sócio-culturais, arquitetônicas e de hábitos que caracterizam uma localidade. E no caso do Rebouças, compreender esse arquétipo pode ser também um primeiro passo para que se comece a escrever uma nova história para o local, hoje degradado.

“[O Rebouças] É um lugar que abriga conflitos e que está à espera, cheio de expectativas. Um lugar à espera e à deriva, também. É um lugar que o que ele quer ser se sobrepõe aos interesses. Pode fazer o que for, se não fizer o que ele quer, não vai prosperar. Enquanto não for respeitado como se deve, nada vai pra frente, nenhum projeto urbano vai prosperar”, comenta Florenzano, que faz ainda um apelo para as pessoas se conscientizarem sobre a importância do patrimônio industrial de Curitiba – e, em especial, do Rebouças.

“O que espero é que o Rebouças seja reconhecido e respeitado. Quero botar luz sobre ele para que seja percebido e visto por meio dessa abordagem do patrimônio industrial. Nossa sociedade tem sido muito passiva por conta do desconhecimento das causas do patrimônio industrial, desconhecimento da importância, do significado, da profundidade, do tamanho e da complexidade desse patrimônio. O que temos hoje são políticas frágeis de preservação, que não alcançam esse patrimônio como se deve. Não adianta cadastrar uma fábrica como paisagem fabril, tem de preservar, colocar um uso, fazer alguma coisa”, aponta a especialista.

 

RÁPIDA:

Como conferir a obra 

O livro “Um Olhar Sobre o Patrimônio Industrial do Rebouças” foi publicado na última semana e está disponível na íntegra ao público, que pode baixá-lo através do site www.reboucasolivro.wordpress.com. Também é possível conhecer mais sobre a obra e sobre sua autora pelas redes sociais @reboucaslivro e @_iaskara .