Este artigo traz uma análise do filme norte-americano “Pleasantville”, no Brasil chamado de “A vida em preto e branco”, como a mídia imagina e tenta intencionalmente representar nosso mundo. O filme aborda diversas questões e valores disseminados em nossa sociedade atual. Sua produção explora as imagens e os elementos visuais, sobretudo em relação à cor. O filme começa com um fundo preto e uma inserção de texto escrito em cor branca, com o seguinte dizer: “Era uma vez…”. Esse enunciado nos remete a ideia de um conto de fadas e com isso podemos dizer que talvez o enredo tenha a intenção de ser ou fazer referência a uma fábula. O filme conta a história de David (Tobey Maguire), um jovem solitário, que não é feliz com sua vida e foge da realidade assistindo “Pleasantville”, um seriado em preto e branco onde tudo é agradável. O universo de Pleasantville é ambientado nos anos 50 e inserido em um contexto comparativo aos anos 90, época retratada pelo filme, que é a mesma de sua produção O, enredo inicia com uma cena demonstrando professores em salas de aula, alertando sobre futuros problemas da humanidade. Entre os problemas destacam-se o aumento de acidentes de trânsito provocado pelo crescente fluxo de veículos nas cidades, desemprego, desigualdade social, alienação dos jovens, problemas ecológicos e o perigo da AIDS. Apesar de o filme ser uma produção dos anos 90, hoje no século XXI, todos esses acontecimentos são reais mazelas de nossa sociedade. 

Nas primeiras cenas do filme, David, o personagem principal, aparece assistindo o seriado. Na tela de uma TV são reproduzidas cenas de uma série antiga, totalmente em preto e branco. David tem uma irmã, chamada Jennifer (Reese Whisterpoon), que é uma garota transgressora, inconsequente e sexualmente ativa. Ela tem esse comportamento porque tenta de qualquer forma se destacar nos ambientes sociais que frequenta, faz questão de ser identificada com parte de uma tribo escolar descolada e, para isso, deixa de lado seus próprios valores, sem pensar no que realmente lhe completa como ser humano. Ela é a típica representação do jovem atual, alienado às questões humanas e que tenta se enquadrar em um grupo social. Seu comportamento é liberalista, extremamente consumista e faz apologia ao sexo descontrolado. Jennifer recebe passivamente os conceitos pulverizados na sociedade por meio das bases do capitalismo e da globalização. A história do filme começa a desenrolar quando os personagens David e Jennifer são enviados do mundo real para o mundo ficcional da TV. Eles são inseridos dentro do seriado “Pleasantville”, através de um controle remoto mágico e, com isso, passam a ocupar o lugar dos personagens da série, Bud e Mary-Sue, filhos do casal principal do seriado. A família representada pelo seriado segue uma vida disciplinada e perfeita ao extremo, mas esse acontecimento faz o ritmo da trama mudar totalmente. O mundo real representado pelo filme é totalmente colorido com a exploração de imagens que enfatizam isso. Já o mundo ficcional da série é totalmente em tons de preto, branco e cinza. As roupas dos personagens correspondem à época em que se passa o seriado e o ambiente é clássico. Essa forma de diferenciação entre dois mundos distintos pode ser comparada com o filme “O Mágico de Oz” de 1939, onde ocorria o processo inverso. Dorothy, a personagem principal da história, vivia em mundo sem cor e quando chega ao mundo mágico de Oz fica maravilhada ao se deparar com uma enorme variedade de cores. David e Jennifer são transportados para a TV após uma briga pela posse de um controle remoto, que apareceu através de um desconhecido técnico de televisão. Eles são transportados assim que apertam o botão vermelho do controle. A cor vermelha pode ser interpretada como um sinal de perigo. Quando chegam ao mundo do seriado, David e Jennifer conversam através da TV com o suposto técnico e as seguintes falas são ditas: “esse não é o nosso lugar”, “devíamos estar em cores”, “estamos presos no mundo dos idiotas”.
Sem saber como voltar para o mundo real, David e Jennifer, decidem entrar no clima e começam a interpretar os personagens do seriado. David leva vantagem, pois como conhece muito bem o enredo, sabe quem são os personagens e a importância que eles têm na vida de Bud e Mary-Sue Parker. Sob estes nomes fictícios, tornam-se filhos George Parker (Wiliam H. Macy) e Betty Parker (Joan Allen), que são pais adoráveis em um lugar onde todos são felizes, não há sexo, não existe violência, ninguém precisa ir ao banheiro; existem bombeiros, mas não existe fogo. Os moradores de Pleasantville desconhecem o que há além da cidade. Para eles, não há nada além. O mundo do seriado é totalmente perfeito. Nada acontece de forma errada. Aparentemente é o lugar ideal para viver e se passa em um ambiente romântico, puro, com clima de inocência. Pleasantiville é a representação de um mundo imaculado. A princípio David fica com medo de alterar os rumos da série, uma vez que era fã e conhecia os comportamentos de cada personagem, mas já sua irmã, entediada com a perfeição do mundo da série, começa a modificar o enredo que, antes de sua chegada, seguia exatamente como estava pré-estabelecido nos scripts. Essa interferência resulta em uma perda de controle. A história começa a tomar automaticamente novos caminhos e o enredo passa a ser construído de acordo com as ações e atitudes dos personagens, sobretudo os que foram trazidos do mundo real.
Essa sistemática é a mesma encontrada em nossa sociedade. Nossos valores e aspectos culturais são construídos de acordo com nossas ações, produções, criatividade e imaginação. Os acontecimentos vão surgindo e de repente uma rosa se torna vermelha. É o primeiro elemento colorido em um mundo sem cor. A rosa vermelha é apresentada logo após uma cena que indica uma relação sexual entre dois personagens. Assim, essa imagem nos remete novamente ao conceito de perda da inocência. Conforme novas regras são quebradas e novos eventos acontecem, surgem novas cores e novos elementos do seriado passam a ficar coloridos.
Tudo não é mais tão agradável em Pleasantville, mas, por outro lado, existem muito mais emoções e sensações que, no contexto do filme, são representadas exatamente pelo surgimento das cores. Inicialmente nem todos os personagens gostam destas mudanças e sugerem que os coloridos sejam separados. Essa separação pode ser comparada com o atual conceito de exclusão, seja de ordem social, étnica, religiosa, racial, sexual e diversas outras formas de marginalização, discriminação e preconceito. Os personagens deixam de seguir um roteiro e começam a fazer suas próprias escolhas, rumo a um destino desconhecido. Esse conceito pode ser usado analogicamente com a história bíblica de gênesis. Adão e Eva viviam no paraíso, mas quando cometeram uma ação que estava fora do pré-condicionado, ficaram sujeitos a sanções e ao surgimento de novos paradigmas, incluindo os problemas e conflitos, que são oposições à ideia de paraíso. Foi aberta a porta de um novo universo para eles, repleto de diferentes descobertas que podem ser boas ou ruins. Suas escolhas determinarão suas experiências.
Conforme os personagens começam a realizar ações diferentes as previstas no roteiro do seriado, cada vez mais os elementos se transformam em coloridos. É como se o mundo ficcional de Pleasantville começasse a se encher de vida e, dessa maneira, fica mais próximo da realidade imaginada pelo filme. A cada demonstração de sentimentos – amor, coragem, alegria, tristeza, bravura, raiva – a cidade e seus habitantes ganham cor e vida. Nesse ponto do filme, parece que duas realidades diferentes tentam sobreviver em uma mesma dimensão. No momento em que os personagens começam a liberar suas emoções reprimidas ou desconhecidas, o filme ganha cores que contrastam com o preto e branco, gerando imagens fantásticas que deslumbram o olhar do espectador e transmite uma ideia do que seria nossa vida sem a presença das cores.
A personagem Betty Parker era a representação da esposa perfeita, que somente cuidava da família, cozinhando e limpando a casa. Para os homens retratados em Pleasantville, as mulheres deviam ser donas-de-casa totalmente dedicadas e nem mesmo pequenas falhas eram admitidas. Um dos personagens chega a dizer: “é uma questão de valores, queremos salvar os valores que tornaram este lugar ótimo”. O conceito sexual de um casal também não era explorado, uma vez que a série tinha a intenção de representar apenas o que convencionalmente é tido como puro e inocente em nossa sociedade. Em determinado momento do filme, Betty é aconselhada por Jennifer/Mary-Sue (sua filha na série), a se descobrir sexualmente. A filha incentiva a mãe a buscar o prazer sozinha, uma vez que, George Parker, o patriarca do seriado, também desconhecia o sexo. Betty em um momento íntimo se estimula sexualmente, descobrindo então o prazer. Nesse momento, diversos elementos a sua volta ganham cor em decorrência das sensações que ela estava sentindo. Ela mesma se torna colorida. A ideia transmitida pelo filme é que a explosão de sensações foi tamanha que pela primeira vez o fogo surgiu no mundo de Pleasantville. Na cena posterior uma árvore pega fogo.
Os personagens do seriado eram totalmente despreparados para um mundo tão diferente como é o mundo real, que nem mesmo os bombeiros da série sabiam como apagar o fogo. Tudo é novo. Todos os acontecimentos despertam grande atenção, engendrando cada vez mais curiosidade e a perda do medo de viver essas novas experiências. Eles descobrem que possuem o livre arbítrio para viver plenamente de acordo com suas escolhas, necessidades e desejos. Mas, além dos prazeres, as novas experiências também trazem os conflitos. Betty, quando se percebe colorida, inicialmente tem vergonha de se mostrar viva, como uma mulher que tem seus próprios desejos e realizações. Em uma cena, David maquia Betty e ela se torna de novo temporariamente sem cor. Em outra cena, um dos personagens descobre o mundo das artes através de um livro de pinturas que antigamente não existia na série. Anteriormente às mudanças, os livros em Pleasantville não tinham conteúdo, eram somente capas recheadas com folhas em branco. Ele fica totalmente maravilhado com as inúmeras possibilidades de cores, tons, texturas, etc, e então começa a produzir obras de arte explorando diversas tendências artísticas como naturalismo, expressionismo, realismo, cubismo, e abstracionismo.
Em outra parte do filme, Jennifer questiona o motivo de ainda estar em preto e branco. Por já ter feito sexo ela acredita que deveria ter ficado colorida, como se obrigatoriamente tivesse que ficar marcada. Porém, descobre, posteriormente, que ficar colorido não tem relação unicamente com sexo, mas sim com o fato de se “encher de vida”, de descobrir o que verdadeiramente lhe faz ser um ser humano real e não apenas um personagem de ficção. Ela então descobre sua paixão pelos estudos e finalmente torna a ser colorida. Nesse contexto, o filme aborda a cor como um significado de novas descobertas, correndo o risco de cometer erros e acertos. Com todas as mudanças, os personagens do seriado então descobrem que mesmo não sendo perfeito, o mundo pode ser ainda mais maravilhoso e fantástico, pois é repleto de sentidos. A cor é o elemento escolhido para expressar esses sentidos. Ela é representada pelo filme como algo que é capaz de nos proporcionar diferentes sentimentos e sensações. A vida em preto e branco, vista através de um olhar simplista, permite-nos usufruir mais dela, mas a cor, com toda sua complexidade, deixa tudo mais interessante. O filme traz a concepção do descobrimento de coisas novas como fonte de prazer intangível. Mostra também a resistência de algumas pessoas, que apesar de viverem em um mundo de constantes mutações naturais, sociais e culturais, não aceitam essas transformações e automaticamente se impedem de viver plenamente a vida. Nem todos querem mudar, assim acontece uma ruptura entre aqueles que querem continuar vivendo em preto-e-branco e aqueles que desejam cores.

Considerações

A cultura determina os princípios de exclusão e de participação no processo de encontros culturais. As imagens possuem uma grande poder de representação da cultura, pois apresentam situações que podem ser alteradas por meio de outras imagens. Nós não só percebemos a realidade, mas também a construímos quando processamos o percebido como sendo real. Toda a materialidade não é nada mais do que uma construção realizada através de nossas percepções. Todas as realidades são virtuais, pois vivemos em ambiente social estruturado nas dicotonias concreto/abstrato, real/fictício.
Atualmente, recebemos constantemente com uma avalanche de imagens. Essas novas imagens, chamadas de técnicas, são símbolos produzidos por aparelhos e para decifrá-los é necessário considerar os mecanismos de sua construção, como reconstituir os textos que criaram aquela imagem e atentar para as regras e linguagens da tecnologia que a possibilitou. Há diversas formas de processar informação e por isso precisamos aprender a receber conteúdos de maneira correta, sem sermos soterrados por informações sem sentido. Enquanto as imagens antigas apenas imaginavam o mundo, as imagens técnicas imaginam textos geradores de imagens que concebem o mundo.
A diferença das imagens técnicas para as imagens tradicionais é que agora as imagens não são apenas representações, mas sim conceitos. Imagens são conceitos transcriptados em cenas. O código dessas novas imagens é o seu significado. O cinema opera como uma ferramenta de assimilação das diferentes configurações de nossas práticas culturais e sociais, uma vez que se caracteriza por criar e apresentar enunciados imaginativos sobre o nosso mundo. Assim, o mundo imaginal constitui-se em um modo de considerar a relação espaço-tempo, que se torna determinante para a compreensão de qualquer sociedade. Nesse contexto, este artigo traz uma análise concebida a partir de uma interpretação do filme em relação ao nosso mundo, através dos elementos e técnicas utilizadas para a construção de sentido.
Para esta análise, as percepções obtidas no primeiro contato com o filme foram se modificando ou se complementado de acordo com os elementos e conteúdos acrescentados ao longo da obra, mediante as observações subsequentes. Todos os elementos somados foram construindo, aos poucos, uma nova percepção diferente da inicial, que resultou nas considerações e apontamentos descritos nesta análise. Algumas observações apesar de não possuírem um alto teor de significância, são culturalmente e sociologicamente oportunas, uma vez que representam símbolos de situações e acontecimentos imaginados em relação ao sentido da vida humana.

Rodrigo Carvalho Crispim é escritor e jornalista