Um dos pilares da arte do século 20 que ainda sustenta uma grande parte da produção artística contemporânea – o deslocamento – tal como hoje o conhecemos, surgiu com Marcel Duchamp. E André Malinski, o Anilina, é um dos artistas paranaenses que mais explora o deslocamento em suas obras.
  Antes, não se deve esquecer que o movimento precursor que possibilitou o surgimento de Duchamp foi o Dadaísmo e que Marcel era, em essência e em procedimentos, um dadaísta, embora o termo não lhe seja muito empregado em função de seu envolvimento com a arte conceitual. Entretanto, sempre será uma incógnita supor como teria sido Duchamp sem a raiz dadaísta.
   Citando Karin Thomas: “Como uma total rebelião contra as formas culturais do desgastado convencionalismo político, social e artístico, surgiu em  Zurique, na Suíça, em 8 de fevereiro de 1916, na tribuna dos imigrantes do Cabaret Voltaire, um primeiro movimento Dadá que abrangia todos os gêneros artísticos e que em pouco tempo teve repercussão internacional. O nome Dadá, aplicado a esta corrente artística destrutivo-satírica, apareceu mais ou menos casualmente quando dois artistas do grupo, Richard Huelsenbeck e Hugo Ball, buscando um nome para seu teatro naquela cidade, abriram ao acaso um dicionário alemão-francês e tropeçaram com esta palavra.” Diccionario del Arte Actual. Editorial Labor S.A. Barcelona.1982.
    A propósito, Dadá, em francês, quer dizer “cavalo”, na linguagem infantil, e “idéia fixa” no sentido figurado, termos que não estão em desacordo com este movimento artístico. E, explicando o “mais ou menos casualmente” citado acima, Norval Baitello – o maior estudioso brasileiro do Dadaísmo – prova, ao contrário do que muita gente pensa, que uma linha lógica de significados pode ser traçada nas obras Dadá através de análise de semiótica da cultura.
  Continua Karin: “A contradição entre a práxis da vida e o mundo idealizado da arte tradicional se tornou insuportável para os representantes Dadá, marcados pela emigração e pelo protesto contra a Primeira Guerra Mundial. Por isso derrubaram a torre de marfim de uma arte harmonicamente do belo e proclamaram em seu lugar a anti-arte do protesto, do choque, do escândalo, com ajuda dos meios de expressão ironico-satíricos.”
Voltando ao francês Duchamp: “Primeiro foi sua pintura Cubo-Futurista intitulada ‘Nú descendo a escada’, exibida no Armory Show, de 1913, em New York, que puxou o tapete sob os pés do mundo da arte. Logo depois, ele duplicou o choque expondo os ready-mades, objetos triviais do cotidiano que expressavam sua filosofia niilista de anti-arte: uma ‘Roda de Bicicleta’ montada num banquinho de madeira, ainda em 1913; um ‘Porta-garrafas’, em 1914; culminando com o urinol exposto em 1917 sob o título ‘Fonte’.” Do livro 20th Century Art – Museum Ludwig Cologne. Taschen, 1996.
   “Foi principalmente Duchamp, em sua exposição de 1919, na Grand Central Gallery, New York, quem ensaiou com seus ready-mades novos modos de produção artística ao proclamar como obra de arte, com o fantasioso título de ‘Fonte’ um produto manufaturado em série como é um vaso sanitário. Neste ponto, a arte contemporânea assume uma nova definição e, baseando seu valor na referência à realidade, determina sua função. O testemunho de referência à realidade vivencial chega a ser mais importante que o produto material acabado da produção artística. Ele dizia de seu ready-made: ‘É um objeto que, pela simples escolha do artista, se eleva à dignidade de objeto artístico’.” , segundo Karin no livro citado.  
  Entretanto, porque há controvérsia, cito Dawn Ades, em O Dadá e o Surrealismo, (Editorial Labor do Brasil. 1976) com grifo meu: “Duchamp só denominou esses objetos ready-made na América, onde começou a destacar outros objetos manufaturados. O próprio Duchamp quis deixar bem claro que não se tratava de transformá-los em objetos de arte”. Aqui entra uma questão de hábito em relação aos objetos cotidianos, alheia ao nosso tema e até porque, como dadaísta, Duchamp tinha o direito e o dever de se contradizer.  Sem falar que controvérsias podem ser explicadas pelo transcorrer do tempo, pela aceitação do artista perante crítica e público e, principalmente, pelo amadurecimento pessoal de Duchamp que fez com que ele fosse modificando seus próprios enunciados ao longo de sua vida. Marcel morreu em 1968, em Paris, sendo inegável, já naquela época, o patamar do conceitual como arte e o gatilho que viria a acionar a questão do deslocamento na arte.
  Continuo o assunto na próxima coluna para falar do deslocamento na obra de Anilina.