Ana Maria Machado na poesia

Ana Maria Machado está celebrando seu amor à vida, no que ela tem de prazer e dor, com um gesto inédito

Francisco Quinteiro Pires/Agência Estado

Ana Maria Machado está celebrando seu amor à vida, no que ela tem de prazer e dor, com um gesto inédito. Pela primeira vez, a consagrada autora de obras infanto-juvenis publica um antologia de poemas – Sinais do Mar (Cosac Naify, 56 págs., R$ 32). “A poesia permite que eu faça essa celebração de modo recatado, escondido”, confessa. A sua poética de temática única e ritmos diversos não é para crianças somente. É para aqueles que veem o mar como o maior dos mestres dedicados a ensinar lições sobre a condução da existência. “O mar nos ensina a noção do tempo cíclico – é só lembrar que a onda vai e vem, a maré enche e vaza”, diz. “Essa é uma lição que nós, os ocidentais, não temos arraigada.”

A situação piorou, segundo Ana Maria, com a urbanização, que trouxe a luz elétrica, alterando a noção de tempo dada pela natureza. Mesmo modificada pelo avanço tecnológico, essa percepção está intacta nos 19 poemas de Sinais do Mar. A explicação talvez esteja na história familiar da autora, cujos genes podem ser classificados de marítimos: a sua bisavó portuguesa era conhecida na aldeia como Rosa, a Marinheira, e os seus avós capixabas tinham o oceano na soleira do quintal. As caminhadas diárias à beira-mar apenas reforçaram essa tendência natural a relacionar-se com as águas salgadas.

Interessa à escritora carioca, de 67 anos, lembrar que, desde pequena, quando ia à praia acompanhada pelos pais, as ondas como a vida exigiam coragem e respeito. “Se você tenta fugir da onda, ela é mais rápida que você”, diz. “A única coisa a fazer é enfrentá-la, mergulhando por baixo, e se deixar sacudir.” E uma nunca vem sozinha. É bom pegar ar e mergulhar de novo, ela explica. “Quis mostrar isso num poema, mas tive de jogá-lo fora por não ter ficado satisfeita com a sua forma.” Ela compara o ato de escrever ao movimento das ondas. “Primeiro você rema até o fundo, passando a arrebentação, onde tudo está acumulado, fervendo”, diz. “Daí você fica à espera da onda certa para aproveitar a forte energia que vem da profundeza “ Depois, vem o processo racional da escrita, quando há a consciência de que não é possível conter o impulso arrebatador da inspiração. “A poesia é uma força da natureza que não domamos, mas com a qual podemos navegar.”

A navegação literária de Ana Maria Machado durou mais de 20 anos, tempo em que trabalhou nos poemas. “E era capaz de ficar mais 50 anos a reescrevê-los, porque jamais me dou por satisfeita.” Para se explicar, a escritora recorre ao norte-americano Henry James que dizia: “Quem não escreve acha que o maior problema de um autor é por onde começar, mas o problema é saber onde colocar o ponto final.” É muito difícil lidar com a criação, esse universo em dilatação que tem de ser enquadrado em letras. “Meus escritos originais vão, aos poucos, se contraindo para ver se seguro essa expansão”, diz. “Quando escrevo poesia, sou mais da família do Graciliano Ramos do que do Guimarães Rosa, porque estou preocupada com a economia de meios.”
Ana Maria Machado percebe três vertentes em Sinais do Mar, classificadas de “concretas, narrativas e sensoriais”. A primeira se refere aos poemas que citam animais como a gaivota (“Revoada”), o siri (“Siri”), o caramujo (“Bernardo Eremita”), a arraia (“Arraia”) e a água-viva (“Dúvida”). A segunda se estrutura na evocação sensorial de sons, visões e cheiros ligados ao mar: é o caso de “Aquarela”, “Terral”, “Salsugem”, “Maresia”, “Gala Solar”, “Facho”, “Maré Baixa” e “Farol”. A terceira é composta de poemas narrativos, “Naus e Nós” e “Primeiro Mar”, os dois trabalhos mais longos, que finalizam a antologia.
Inspirado na figura do marroned, homem castigado com o abandono numa ilha deserta, “Naus e Nós” é um poema sobre o homem abandonado à própria sorte. “Primeiro Mar” é uma homenagem à literatura, à imaginação que o domínio das palavras proporciona. “O que se leu mostrava o infinito/ Só não se imaginava tão bonito/ Tão pleno de surpresas e imprevistos.” O ritmo é variado. “Alguns poemas são francamente musicais, com exploração de aliterações, outros são mais focados no jogo com as palavras e na disposição delas na página.” A forma varia da métrica tradicional à estrutura do cancioneiro popular.
Pintora, Ana Maria  pensou em fazer as ilustrações da sua obra. Mas desistiu. A editora apresentou um livro gráfico, inspirado em poemas e canções de Fernando Pessoa, Martin Codax  e Dorival Caymmi. As letras mimetizam movimentos marítimos; o papel evoca a textura da areia. Em Sinais do Mar, a imaginação navega livremente. Ela reafirma a validade de uma crença de Ana Maria Machado – apesar das instituições que estabelecem limites, “todos os artistas continuam imaginando”. E provocando o desejo de liberdade em todo indivíduo.