Reprodução / Facebook – João GIlberto e a neta Sofia

E foi-se João Gilberto. A combinação voz e violão mais importante da história da música brasileira. O último artista vivo daquela geração dos anos 1950 que sonhava com um Brasil criativo e independente. Já se foram Tom Jobim, Di Cavalcanti, Oscar Niemeyer, Carlos Drummond de Andrade, Portinari. E agora João Gilberto, neste último sábado (6), aos 88 anos, de causas não divulgadas. Ele estava no seu apartamento, no bairro do Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro.

João Gilberto tinha problemas de saúde, que não eram poucos. Seu estado de saúde teria piorado desde a morte da ex-mulher, Miúcha, em dezembro de 2018, com quem foi casado e teve a filha Bebel. Para piorar seu ânimo, ele foi vítima de um processo de interdição, movido pela filha e também cantora Bebel Gilberto, desde 2017. O músico até chegou a ser despejado do apartamento em que vivia, por dever anos de aluguel – sua situação financeira estava precária havia tempos. João Gilberto aceitou mudar-se para um apartamento emprestado na Gávea. A situação só foi normalizada depois.

Recluso há anos, sem aparecer em shows ou em fotografias, João Gilberto havia completado 88 anos em 10 de junho. No dia anterior, ele participou de uma comemoração com a família, no Rio de Janeiro. A sua neta Sofia, de três anos, também estava presente. Uma foto do encontro de avô e neta foi publicada nas redes sociais na ocasião. Foi uma das últimas aparições para a mídia.

No papel, João deixou três filhos, João Marcelo, Bebel e Luisa. Mas, na música, ainda há um sem número de afilhados, como são considerados criadores e cantores que vieram logo depois de sua geração, como Gal Costa, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Edu Lobo e Francis Hime.

Foi João Gilberto o criador da bossa nova, fundador do pensamento musical moderno no País e inspirador de uma geração que só iria tocar algum instrumento e se encorajar a cantar com a voz que tinha (e não com a voz dos cantores do rádio) porque o ouviu sussurrando ‘Chega de Saudade’ em 1958. João Gilberto era o próprio violão. Calado para o mundo, falante consigo mesmo, percutia as ideias musicais em sua caixa de ressonância de forma que só quem estivesse próximo, na sala de seu apartamento, pudesse ouvi-las. Na vida em monastério que adotou há décadas, seguia invisível, abrindo a porta de seu apartamento apenas para poucos, como Bebel.

João nunca esteve pronto para se tornar um gigante, e morreu sem entender o que era isso. Menino de Juazeiro da Bahia, filho do comerciante Juveniano Domingos de Oliveira e da católica Martinha do Prado Pereira de Oliveira, a Patu, João viveu em terras juazeirenses até 1942, aos 11 anos, quando seguiu para estudar em Aracaju. Juazeiro ainda o teria de volta quatro anos depois, quando o violão que o pai lhe deu começou a ganhar as primeiras carícias. A Rádio Nacional lhe trazia o mundo e João flutuava ao som de Orlando Silva, Dorival Caymmi, Chet Baker, Carmen Miranda. O primeiro grupo, Enamorados do Ritmo, veio logo, e Juazeiro ficou pequena.

Salvador teria sério papel na formação de seu caráter artístico. Aos 18 anos, em Salvador, já trabalhava com carteira assinada na Rádio Sociedade da Bahia. Não havia ainda desenhado o formato voz e violão, mas seguia os mandamentos de Orlando Silva tentado imitá-lo, por mais que o moderno já fossem Dick Farney e Lúcio Alves. O grupo vocal Garotos da Lua o chamou e lá se foi, gravar dois discos 78 rotações.

O Rio fervia na segunda metade dos anos 50, e foi para lá que João seguiu, aos 26 anos, em 1957. Sem recursos, seguia a trilha de quem queria ser alguém com um violão sob o braço. Cantou para quem poderia lhe fazer diferença, como Tito Madi, mas teve mais sorte ao cair nas graças do produtor Roberto Menescal.

O violão de João virava a vedete. ‘Bim Bom’, uma das primeiras que apresentou aos círculos de jovens músicos no Rio, já trazia elementos de novidade. A levada uniforme deslocando acentos fortes para lugares incomuns, a harmonia sugerindo caminhos pelos quais ninguém passava, a mão que fazia acordes fazendo também percussão. A voz de João deixava as tentativas da impostação e partia para o naturalismo de Chet Baker quando cantava. Volume baixo e notas de longa duração, limpas, sem vibrato. Depois de acreditar no violão, João passava a ter fé no fio da própria voz.

E, então, fez-se a Bossa Nova. Era julho de 1958 quando Elizeth Cardoso apareceu com o disco ‘Canção do Amor Demais’, com músicas de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Ao violão, em duas das faixas, ‘Chega de Saudade’ e ‘Outra Vez’, João Gilberto. Era só a ponta da cabeça de um baiano que se revelaria por inteiro um mês depois. Em agosto, João, já uma aposta de Tom Jobim, Dorival Caymmi e Aloysio de Oliveira, grava seu próprio 78 rotações com ‘Chega de Saudade’ e ‘Bim Bom’, pela Odeon.

O que João fez, diminuindo as frequências da voz e do violão ao mesmo tempo em que estendia a harmonia, criou uma linguagem brasileira e, sobre ela, um novo gênero. Seguiu na formatação de sua proposta com ‘Desafinado’, de Tom e Newton Mendonça, e ‘Hô-bá-lá-lá’, de sua autoria. ‘Chega de Saudade’ já o havia definido como um acontecimento. “Em pouquíssimo tempo, (João) influenciou toda uma geração de arranjadores, guitarristas, músicos e cantores”, escreveu Tom Jobim na contracapa do disco de 1959. Sessenta anos depois, a música não chegou ainda ao tempo em que ele viveu.

Cantor será velado nesta segunda-feira no Rio
O corpo do cantor e compositor João Gilberto será velado nestta segunda-feira (8), das 9 às 14 horas, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. O velório será aberto ao público. No dia de ontem, o corpo permaneceu no Instituto Médico Legal (IML) do Rio. No domingo (7) à tarde, a filha do compositor, Bebel Gilberto, chegou ao Rio de Janeiro. Ela estava nos Estados Unidos. O filho João Marcelo Gilberto não comparecerá. Ele mora em Nova Jersey, nos Estados Unidos, e, segundo seu advogado, está em processo de renovação de visto.


Lamentos

“Meu amado vovô virou uma estrelinha, a estrela mais brilhante do céu. Meu vovô foi o vovô mais amoroso e carinhoso que eu podia ter tido, pedia pra eu irá pra lá todos os dias e quando estava tarde da noite e já estava na hora de eu ir embora, depois de eu já ter passado o dia todo com ele, falava: “Mas já vai? Dorme aqui..!” Comia pra ficar forte pra brincar comigo. Me dizia sempre que eu era grande e que todo mundo ia gostar de mim.
Sofia Gilberto Oliveira, neta do cantor


“Se foi João Gilberto o maior gênio da música brasileira. Influência definitiva no meu canto. Fará muita falta mas seu legado é importantíssimo para o Brasil e para o mundo.”
Gal Costa, cantora


“Vai minha tristeza e diz a ele que sem ele não pode ser. Um gênio que revolucionou para sempre a música popular brasileira. João criou a Bossa Nova e me influenciou imensamente. Um dia ele me disse que eu era de sua família. E sou mesmo. Ele ensinou todos nós a cantar da forma mais bela do mundo. Vá em paz, mestre!”
Daniela Mercury, cantora


“A bossa nova surge com ele porque ele é um gênio, no violão, principalmente. O João Gilberto sai do Rio de Janeiro cantando de uma maneira, influenciado por Orlando Silva, sai tocando violão aparentemente comum e, quando volta, ele volta com novo violão e nova maneira de cantar que não se sabe ao certo como ele descobriu. Essa nova maneira é que leva a música popular brasileira ao exterior”.
João Máximo, escritor e jornalista


“Talvez um dia o Brasil entenda quem foi o João Gilberto. Seja como for, sua semente rendeu árvores, galhos, flores, frutos e novas sementes pelos quatro cantos do mundo nos mais variados estilos musicais. Sua batida diferente, seu jeito de cantar, de dividir, usar o microfone, sua forma de gravar e o perfeccionismo à beira do absurdo… tudo em prol da música mais suave e pura em sua essência. Viva João e sua bossa sempre nova.”
Rodrigo Faour, crítico musical