O filme Maré, nossa história de amor, de  Lúcia Murat foi um dos três longas brasileiros do 58º Festival de Berlim, encerrado sábado passado. Apresentado na concorrida mostra paralela “Panorama”, é uma releitura bem sucedida do clássico Romeu e Julieta, de William Shakespeare. A premiada diretora transpõe o drama de amor para a favela em forma de musical. Poético, o filme retrata este universo da sociedade brasileira a partir de uma perspectiva inédita no cinema nacional. Com a participação especial de Marisa Orth e o fantástico elenco de jovens atores e bailarinos de diversas comunidades, a produção será lançada no Brasil em abril.

Jornal do Estado — Maré toma o universo da favela, tal como os outros dois longas nacionais que participaram do Festival de Berlim (Tropa de Elite e Cidade dos Homens). Mas a diferença foi a opção por um musical, um enfoque singular dentro da cinematografia nacional. O que levou a esta decisão?
Lúcia Murat —  Há vários aspectos que são importantes. Primeiro, eu tinha a idéia de fazer um filme de gênero, um filme musical que não seja “entertainment”. Ou seja que tenha uma cara de cinema de autor, sem estar copiando as características do gênero. E que eu esteja criando e descobrindo uma coisa nova. Também porque fui dançarina e sempre adorei musicais. Ao mesmo tempo, seria inviável fazer um musical de “entertainment” com minha história de vida e meu trabalho de cineasta. Vi um grupo de favela bem interessante dançando e pensei em fazer um musical na favela. Por acaso, estava sempre em contato com o pessoal da [favela] Maré, que é dividida entre duas gangues. Existe uma “faixa de Gaza” bem no meio dela. A partir disto pensei em fazer o Romeu e Julieta.  Tínhamos um “script” feito com ajuda do Paulo Lins [autor de Cidade de Deus]. Mas tudo se desenvolveu muito mesmo durante os workshops.
JE — É inevitável ver seu filme sem pensar em West Side Story, o musical de Robert Wise. Até que ponto ele foi referência para sua livre adaptação?
Lúcia —  Adolescente devo te-lo visto umas  50 vezes. Quando decidi fazer este filme, achei que deveria fazer algo diferente, único e brasileiro. Se eu tentasse fazer no estilo de musical da Broadway, estaria ferrada. No nosso filme, a coreógrafa [Graciela Figueroa] se comportou muitas vezes quase como um DJ, tentou harmonizar os movimentos que os jovens tinham. A proposta de um filme com a colaboração deles foi muito importante.
JE — A maior parte do elenco é de  adolescentes das comunidades. Como isso influenciou o roteiro?
Lúcia — Na verdade, tivemos que adaptar a estória às pessoas que estavam ali, que não eram atores. A jovem que faz o papel da Analídia (Cristina Lago) já tinha a intenção de ser atriz, tinha uma certa formação mas não tinha feito nada. E alguns papéis eu escrevi para as pessoas que tinham condição de “segurar a onda”, como o Babu Santana. Portanto, quando escrevi o roteiro eu pensei em alguns atores que ajudassem os meninos. Então há participações especiais e uns papéis como o caso do Babu, que foi escrito praticamente para ele, de maneira que não precisasse dançar nem cantar. Em Marisa Orth eu já estava pensando nela. Com o resto do grupo, que era basicamente formado por dançarinos, foi muito trabalho de ensaio.

JE — Como foi realizado o casting do elenco?
Lúcia — Fizemos teste com 500 dançarinos de comunidades, com assessoria da Sílvia Sóter, que é crítica de dança e tinha mapeado todo o universo que trabalha com dança na favela. Nossa idéia era combinar movimentos diferentes; eu não queria fazer um filme de “hip hop”. Queria fazer um filme que pudesse compor todos os diferentes corpos que o Brasil tem, com os diferentes movimentos que você tem numa favela ou no Brasil como um todo. Por isso, a idéia de misturar balé clássico com hip hop e com dança de salão. A abertura do filme é um pouco isso, mostrando individualidades e especificidades de movimento e, ao mesmo tempo, a capacidade que os atores têm de fazer em conjunto um movimento único. É como se tivéssemos na abertura do filme a riqueza imensa de movimentos para poder apresentar um resumo do filme. Então nós fizemos testes nestas comunidades e além disso existe uma coisa que é fortíssima hoje nas favelas que é o movimento hip hop. É muito organizados. Também contamos com o apoio do Bruno Beltrão que tem um trabalho muito interessante com estes meninos. Então, nós misturamos os testes nos locais com projetos sociais de dança com os testes em aberto. Dos 500 candidatos iniciais,  pré-selecionamos 200. Fiquei muito impressionada, porque achava que seria difícil encontrar os jovens. E aí surge a grande dificuldade que é de cortar. Começamos a decidir pelos diferentes biotipos, pelos movimentos diferentes.
JE — O que daprodução  demorou mais?
Lúcia —  Antes de fazer o meu filme Quase Dois Irmãos(2004), eu já estava trabalhando neste projeto. Isto tudo leva muito tempo, o financiamento por exemplo. Deve fazer uns quatro ou cinco anos desde quando comecei. Mas o que este filme tem de característico é que os ensaios foram muito pesados e longos. Foram seis meses de ensaio, às vezes de manhã, de tarde e à noite.
JE — Que dificuldade você encontrou nas filmagens da favela?
Lúcia — O ator Babu Santana falou uma coisa engraçada sobre isso. Todo mundo só pergunta sobre a dificuldade e o perigo de filmar na favela. Ninguém fala como é hiper legal filmar na favela, que todo mundo colabora e está feliz de estar ali; ninguém fala como é um saco filmar com a classe média. E isto é verdade, acho que ele tem toda a razão. As coisas não são assim maniqueístas. Existe o lado da segurança. E exatamente por isto não filmei exatamente na [favela da] Maré. Filmamos na Tavares Bastos que é uma favela pequena que não está com tráfico agora e na  Rio das Pedras que é dominada pela milícia, que é tão danosa quanto o tráfico mas mais fácil de negociar. O problema é que eles vivem do “tráfico de proteção”. E filmamos uma outra parte no finalzinho da Maré e aí foi bastante complicado. Quando nós começamos ela estava na mão do Comando Vermelho e no meio das filmagens o Comando Vermelho foi expulso e entrou a milícia.
JE — Você já havia participado do Festival de Berlim em 1997 com Doces Poderes na mostra paralela Forum e agora foi na renomada “Panorama”, espaço que tem se tornado a vitrine. Como foi a sua participação este ano?
Lúcia — Foi uma excelente notícia saber que eu viria para Berlim. O filme foi visto com muito carinho pela curadoria. E as sessões foram muito boas. O público ficou encantado com a possibilidade de ver os jovens de uma favela fazendo uma outra coisa que não  guerrear. E isto é que é o grande “barato” do filme, eu senti que o público pega muito bem este aspecto. O fato das crianças dançarem bem e terem uma energia fantástica, encanta as pessoas. E as perguntas do público giram muito em torno disto, como encontramos estes meninos ou como é que eles são.
Je – Maré, nossa história de amor é um filme extremamente poético que não exclui o tema da violência.
Lúcia – É claro. Isto é uma coisa que existe, a violência na favela é uma coisa inegável. É impossível tratar deste assunto sem falar no tráfico. E busquei a idéia da disputa para poder trabalhar um clássico da dramaturgia ocidental, isto também possibilita uma certa identificação com o Primeiro Mundo, uma aproximação com a dramaturgia da história ocidental.