Quando completou 90 anos, em 11 de maio passado, Carlos Lyra deve ter sorrido com as manifestações de alegria comemorando, mais do que uma data redonda, sua existência entre nós. E neste momento, em que nos deixa fisicamente, sinto que seu tempo não passará, sua obra sempre será atual. Por isso, é o momento de afirmar que ele está no mesmo nível artístico de invenção da trinca que meu saudoso amigo e mestre Zuza Homem de Mello chamava de “A santíssima trindade da bossa nova”: Tom Jobim, Vinícius de Moraes e João Gilberto.

Só pelo musical Pobre Menina Rica, música dele com letras de Vinicius, Carlinhos já seria um dos grandes. Mas o conjunto de sua obra, pelo volume e sobretudo pela qualidade, é um daqueles monumentos atemporais da música brasileira.

Vamos aos fatos. Emplacou três músicas – Maria Ninguém, Lobo Bobo e Saudade fez um samba – no mais icônico álbum da bossa nova, o Chega de Saudade, de João Gilberto, de 1959. Ouça Lobo Bobo, que ele compôs para a letra certeira de Ronaldo Bôscoli:

Lyra não era um, mas muitos. Cantou o amor, o céu, o azul, o mar, enfim, a bossa que soava ingênua em tempos politicamente difíceis. E, da trupe da bossa nova, ele viveu com intensidade e militância total o conturbado tempo político que o Brasil atravessou nos anos 1950 e 1960.

Foi um dos fundadores, com Oduvaldo Vianna Filho, Ferreira Gullar e Leon Hiirzman, do Centro Popular de Cultura, o CPC da UNE, a União Nacional dos Estudantes, no Rio de Janeiro. Compôs o hino da UNE. Vale lembrar um pouco conhecido Samba da Legalidade em parceria com Zé Keti.

Daquele mesmo momento político perigoso para quem se contrapunha à chamada paz dos cemitérios é a Canção do Subdesenvolvido. Ouça no YouTube e se emocione com o engajamento inteligente e artisticamente virtuoso de Lyra.

Mas Carlinhos não era só o militante. Talvez ninguém tenha sido mais lírico e tenha cantado o amor como ele. Ok, concordo que ele contou como parceiro com o maior poeta-letrista da língua portuguesa, Vinicius de Moraes. Como Tom, aliás.

Neste nicho romântico, ele assinou algumas gemas douradas da música brasileira, como Samba do Carioca, Primavera, Minha Namorada e Marcha da quarta-feira de cinzas. Isso quando não fazia logo música e letra, como por exemplo em Quando Chegares, que Caetano gravou em 1993 e você pode saborear em menos de 2 minutos, só violão, voz e assobio, aqui:

O humor fino era outra de suas qualidades. E qualquer um que o tenha assistido em shows sabe bem disso. Numa dessas noites iluminadas em show de 1987, disponível na rede, Carlinhos conta a história de Pau de Arara, comedor-de-gilete, canção do musical Pobre Menina Rica, que foi tremendo sucesso popular. E diz que a gravação de Ary Toledo ficou tão famosa que, a certa altura, o próprio Ary passou a se considerar publicamente o autor”.

Estes exemplos mostram como Carlos Lyra sempre foi um letrista, compositor e músico essencial na música brasileira. A bossa nova, ninguém nunca negou, tinha forte influência do jazz estilo “West coast” dos anos 1940, com músicos notáveis como Shorty Rogers, Gerry Mulligan e o maravilhoso trompetista e cantor Chet Baker.

Tom e toda a trupe bossanovista era fã de carteirinha, sobretudo de Chet Baker talvez mais influente por aqui como cantor (João Gilberto com certeza o ouviu quando gestava seu canto genial).