FOTO: Vogue em cena na peça “Fome”, apresentada no ano passado, no Festival de Curitiba. Crédito: Annelize Tozetto

Referência no teatro em Curitiba, Vogue estará no Festival de Curitiba com uma montagem de “Sonho de uma Noite de Verão”, na qual propõe uma celebração à vida – uma espécie de catarse para quem enfrenta um câncer há cerca de 3 anos. Nesta entrevista, ele também avalia a evolução do teatro em Curitiba: “Hoje nos olham com respeito”

Tacatiquitacatiquitaca! É a reta final de ensaios da peça “Sonho de uma noite de Verão”, presente na Mostra Lucia Camargo, do Festival de Curitiba, e o diretor Mauricio Vogue cantarola ao microfone o ritmo frenético que espera dos atores.


Ele orienta o elenco: “Olhou para cima já tem que vir a emoção. O tuch, tuch está vindo. Começa a dançar com a pessoa que está ao seu lado. Pula, e alegria, e foi, e foi, e foi! E a festa continua….”
A festa tem continuado para Vogue há 56 anos, desde que ele nasceu, literalmente, no circo. Uma festa intercalada com um percalço ou outro ao longo da vida. O mais grave deles, se iniciou há cerca de 3 anos, após um procedimento para retirada da vesícula: um câncer que vem tratando desde então.
Entre períodos de maior debilidade, em que chegou a perder 38 Kg, Vogue afirma estar em um bom momento e em uma fase menos agressiva do tratamento. Ele ensaia seis horas por dia e demonstra otimismo. Mas a nova fase de quimioterapia tem efeitos colaterais, como a insônia. “Do nada você acorda. Puf!”, conta.
É tiro e queda para potencializar o temperamento elétrico do ator e diretor, que aproveita as noites insones para pensar em detalhes da montagem e mandar áudios para amigos e componentes da companhia – sonoras as quais denomina com os estágios notívagos (insônia 1, insônia 2, etc).
A pressa e a vontade de fazer várias coisas, sem deixar para amanhã, foi outro efeito colateral de quem viu a morte rodear por perto, mas vem dando um drible caprichoso nela.
A festa continua e em breve chegará aos palcos, em notas de Shakespeare com a cadência única proposta por Vogue, no Dizzy Café. É uma peça para celebrar a vida. A estreia acontece no dia 6 de abril e terá apresentações até o dia 9, sempre às 20h.
Até lá, Vogue vive as preocupações naturais de uma estreia. Contudo, ele viu avanço nos últimos ensaios e aposta que os deuses do teatro atuarão novamente em seu favor. “Terminamos a marcação e é sempre uma alegria. Estou super na adrenalina”.
Na sua obra maior, que é sua própria história, o diretor recusa o papel de vítima, sendo essa a sua primeira recomendação diante do pedido de entrevista. “Não aceito que me coloque no papel de vítima”.
Contudo, não é besta para bancar uma de herói. Vogue concilia o tratamento conservador à base de quimioterapia com opções alternativas. Compõem o enredo cirurgia espírita, terreiro de umbanda e janaúba – um remédio natural com supostos efeitos benéficos contra o câncer. “Mas não abro mão da ciência”, salienta.
Nem da ciência, nem da vida. “A gente decide a nossa vida. A hora que eu quiser me entregar, eu tenho essa chance. É só eu desistir. Mas eu não vou. Continuarei fazendo quimio e tomando a janaúba”.
Da morte, só tem medo de perder os bons momentos vindouros, como estreias de teatro. “A vida vai continuar, com as pessoas festejando e indo em estreias e eu não vou poder”, lamenta, em tom de brincadeira.
Da maneira como a cena teatral anda na capital, tem muita estreia boa por acontecer. O dramaturgo avalia que o teatro curitibano evoluiu consideravelmente desde os anos 1990, com contribuição também do Festival de Curitiba, e deve continuar crescendo. “A arte curitibana começou a ser mais vista. As pessoas prestam mais atenção nos artistas curitibanos e têm muito respeito”.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Como você se sente agora, após terminar o ensaio?
Mauricio Vogue: Eu estou super elétrico. Hoje terminamos a marcação e é sempre uma alegria. Mas, chega uma hora em que a bola começa a baixar, eu vou pra casa, mas a minha cabeça não para.
Estou tendo insônia, trabalhando de madrugada. Primeiro, pela quimioterapia. É inacreditável: quando você dorme e seu corpo está mais calmo, ela começa a trabalhar. Do nada você acorda. Puf!

E não consegue voltar a dormir?
MV: Não consigo. É sempre umas 3h30. É muito maluco. Eu mando mensagem para as pessoas com quem trabalho – cenógrafo, produtora, coreógrafa. Eles estão dormindo, mas sei que pela manhã eu vou ter as respostas. Aí vou colocando assim: insônia 1, insônia 2. Eu mando pra eles, pois tenho tanta coisa pra conversar.

Há muitos detalhes ainda para resolver sobre a peça?
MV: Muitos. Mas vai dar tudo certo. Os deuses do teatro ajudam. Chega na hora e tudo começa a acelerar e a se resolver. Parece que a gente vai deixando tudo para última hora, mas não é. Acontece automaticamente. Coisas que a gente poderia ter resolvido um mês atrás, mas não adiantaria. É um processo natural.

Como foi descobrir a doença?
MV: Eu fui tirar a vesícula, que estourou. Qualquer cirurgia que você faça, pode ser do dedo, eles perguntam se você quer uma biópsia. Eu não queria, mas meu marido me convenceu. Foi sorte, pois foi um diagnóstico precoce. Se eu não tivesse feito a biópsia, eu só iria descobrir em 2021 – e descobri em 2019 – e talvez não adiantasse mais.
Na hora é um baque. Você começa a suar frio, pois acha que acabou. Mas, depois do terceiro dia, fui trabalhando a mente. Sempre tive muita fé. No começo, eu perdi 38 kg, por causa do tratamento. Os médicos tentaram tirar o tumor, mas ele era tão pequenininho, pois era diagnóstico precoce mesmo, que não conseguiram. Só que se alastrou. Sabe quando mexe no vespeiro? A partir daí, comecei a quimioterapia. Eu estava muito magro, aquela pele escura, o pulso desse tamanhinho. Não tinha condições de trabalhar. Não saia da cama, mas nunca fiquei no hospital
Você permanecer convicto que vai dar tudo certo na peça, por exemplo, é uma forma de fé.
Eu sempre tive isso. Eu sou espírita, então eu fiz cirurgia espírita. Tive em terreiros de umbanda. Tomo um remédio natural extraído de uma raiz que se chama janaúba. Fui em tudo. Se você falar pra mim que lá longe tem uma senhorinha que benze, eu vou na senhorinha. Mas nunca vou deixar a ciência, que é a quimioterapia.

Agora o tratamento está em um estágio que já não é tão agressivo?
MV: Agressivo foi lá no começo. Agora, não é nada agressivo. Por todas as questões do tratamento, da minha fé, religiosidade, espiritualidade, os amigos, a alimentação que eu mudei, eu com a minha verdade, conversando e refletindo comigo. Eu acho que isso foi ajudando.
Eu tenho um cateter hoje em dia, pois eu não tinha mais veia no braço. Demorei um pouco até aceitar colocá-lo. Hoje eu chamo de cateter do amor.

E você mudou muito? Como esse processo te transformou?
MV: Quando você está em uma situação de uma doença crônica, te olham e te dão a sentença de morte. O câncer não é uma sentença de morte. Esse é um dos problemas que todo ser humano tinha que saber como lidar, pois afeta quem está com câncer.
Não sou vítima e não é luta. Pois luta pra mim é guerra. Eu estou vivendo e buscando o melhor para mim e vou continuar vivendo como qualquer pessoa. Está cheio de gente doente. Alguns morreram antes de mim, inclusive. A própria pandemia mostrou isso.
A gente decide a nossa vida. Então, a hora que eu quiser me entregar, eu tenho essa chance. É só eu desistir. Mas eu não vou. Continuarei fazendo quimio, tomando meus remédios, tomando a janaúba.
Fiquei mais frágil. Nessa fragilidade, eu enganei o câncer mostrando que eu estou bonzinho. Uma espécie de um acordo: ‘ah, olha como você me mudou’. Para mim é uma maneira de eu enganar o próprio câncer. Ontem aconteceu uma coisa. Cheguei irritado ao ensaio. Há muito tempo ninguém me via assim. Eu tinha tido insônia muito pesada. Cheguei aqui e estava brigando, pegando no pé.

Não é do seu perfil?
MV: Era. Mudou porque eu fiquei mais frágil. Hoje, um dos atores, o Rafael Camargo, falou: ‘Maurício, percebi uma coisa: Você driblou o câncer e voltou a ser quem era. Eu acho isso legal, pois você está vencendo o câncer e está com mais poder do que ele”.

Você também não deve ficar pensando nisso o dia todo.
MV: Não. Sabe, eu já cheguei a esquecer de fazer químio. Minha psicóloga falou que era um bom sinal.

Como ajudou o acompanhamento psicológico?
MV:Me ajuda bastante por causa da ansiedade, medo de morrer, essas coisas. Eu não tenho medo de morrer, propriamente. Perdi alguns amigos e eu sabia que a vida iria continuar aqui. Eu tive momentos muitos felizes que eu queria que as pessoas que se foram, estivessem. Aí eu penso: ‘Ai que dó, eles se foram e não estão curtindo esse momento’. Eu me pergunto se, quando eu morrer, a vida vai continuar e todo mundo vai continuar festando e ir a estreias e eu não vou poder. E eu não sei para onde eu vou. Quem sabe eu vou para um lugar muito melhor que uma estreia. Eu adoro estreias, tanto dos outros, quanto das minhas.

Houve muitas demonstrações de afeto e solidariedade?
MV: Em muitos momentos, me emocionei muito, quando eu via amigos buscando uma palavra. Mudou o trato. Sinto que não me olham com uma cara de “ai tadinho”. Ai tadinho nada. Mudou o cuidado dos amigos, de querer estar mais perto de mim. Para viver a pessoa não precisa estar doente, mas se tocar: ‘Meu, vamos aproveitar a vida, independentemente de estar com doença ou não, e estar juntos’. Algumas pessoas se afastaram, mas eu também entendi. A pessoa sofre por antecedência. Ela gosta tanto de mim que não quer estar por perto.

E a peça agora “Sonho de uma noite de Verão” seria uma espécie de catarse?
MV: Tanto “Anjo Maldito” foi, que estreou recentemente, quanto “Sonho de uma Noite de Verão”. Cada uma delas tem características muito diferentes:

Como é se dar conta de uma maneira tão potente, como deve ocorrer ao se descobrir uma doença grave, da finitude da vida?
MV: Eu sinto uma pressa. Antes eu fazia tudo mais devagar. Parece piegas o que vou falar, e se parecer, eu sou piegas mesmo. Mas trabalhar com a arte e falar o que eu quero me deixa muito bem e os meus resultados de exames mudam. É inacreditável. É louco, pois a doença também é psicológica. Claro que existem diagnósticos que não são precoces e estão em estágio terminal.
No meio artístico, dizem que você é generoso e procura dar oportunidades para atores. Como é isso?
Sim, eu sempre procuro. Nesse elenco, por exemplo, temos cinco atores que eu não conhecia. Foram pessoas que eu conheci numa oficina que ministrei e que têm muito talento. A gente precisa alimentar a arte com pessoas novas. Elas abrem a minha cabeça. Conforme ficamos mais velhos, ficamos chatos. Eu acho que sou muito jovem ainda. Tenho essa ansiedade da juventude.
Às vezes, eu tenho que colocar atores que eu já confio, pois é pouco tempo de ensaio. Como a gente tinha tempo de ensaio, eles os atores jovens uma participação legal dentro do espetáculo. .

Como é possível manter um teatro, como vocês fazem há 19 anos com o Teatro Regina Vogue?
MV: Na luta. Projetos, projetos, projetos, Lei Rouanet, espetáculos que vêm de fora. Só com a bilheteria, não dá. Tivemos um patrocínio durante 5 anos. Agora estamos atrás de outra empresa para fazer parceria e ter o nome da empresa aqui. E a própria empresa pode usar o espaço para palestras e outras ações.

Como você avalia a evolução do teatro em Curitiba?
MV: Só crescimento. Vemos isso agora com as quatro companhias curitibanas que estão participando da mostra Lucia Camargo, do Festival de Curitiba. Nunca aconteceu isso. Esse crescimento acontece desde o final dos anos 1990, quando surgiram companhias como a Sutil, do Felipe Hirsch e Guilherme Weber, com “A vida é cheia de som e fúria”.
Já tínhamos destaques em novelas. A Guta Stresser estava lá na “Grande Família”. A Simone Spoladore tinha feito “Esperança”. Mas falando propriamente de teatro, foram surgindo muitas companhias de pesquisa, de laboratório, experimentais.
Uma coisa vai puxando a outra, com uma formação mais contemporânea de artistas e diretores. Além disso, companhias de comédia, como a Companhia dos Palhaços e a Antropofocus, que era um humor pesquisado.

O Festival de Curitiba contribuiu para isso?
MV: Sim, com muita visibilidade. “A vida é cheia de som e fúria” apareceu no Fringe. Alguns curadores assistiram e levaram o espetáculo para São Paulo. Foi uma explosão! Depois, vieram outras companhias, como a Companhia Brasileira. Revelaram o Beto Bruel, o gênio da luz, para o Brasil inteiro.
A arte curitibana começou a ser mais vista. Agora as pessoas prestam mais atenção aos artistas curitibanos e têm muito respeito. Quando você vai para São Paulo, Rio e fala que é ator de Curitiba, te olham de outro jeito – tipo, ‘aí tem coisa boa’. E tem: disciplina, organização, concentração, estudo.