Franklin de Freitas – Seu Gildo na sua oficina: esmero na confecção do produto

É na pequena oficina, com cerca quatro metros quadrados, que Hermenegildo Cougo, um sagitariano de 83 anos, passa boa parte do seu tempo em uma dedicação amorosa ao seu ofício: fazer cadeira de rodas para cães. O tamanho do espaço é inversamente proporcional à vontade de conversar do seu Gildo, como ele é conhecido, inclusive entre os veterinários. Foi por meio de um deles que cheguei ao simpático senhor, quando ficou claro que era grande a chance de nossa cachorra não recuperar o movimento das patas traseiras.

O jeito como ele (o veterinário) falou sobre as cadeirinhas em 3D fabricadas em sistema industrial deixou claro que elas não chegavam aos pés das criadas pelo tal seu Gildo. Entre o choque da nova realidade e o encontro com o criador ainda foi um tempo, necessário, talvez, para “cair a ficha” de que tudo tinha mudado.

Ao chegar, já gostei do lugar – uma casa com quintal no bairro Campina do Siqueira, araucárias exuberantes e um belo labrador nos recebendo no portão. Seu Gildo foi logo falando sobre como se sente nesses dias estranhos. “Não sigo minha vida pela maioria. Os sagitarianos são bem assim”, diz, deixando claro o desconforto com esses tempos em que “o celular faz tudo pelas pessoas e ninguém conversa mais com ninguém”. E seguiu deixando escapar a cada palavra o gosto pelo ofício que escolheu há 19 anos, depois de, mais uma vez, ter que recomeçar tudo do zero, por conta de outro revés na vida profissional que o obrigou a fechar a loja de uniformes escolares que manteve por 13 anos.

O amor pelos quadrúpedes, estampado também nas paredes – em fotos de cachorros cadeirantes e no desenho que a neta, formanda em veterinária, fez dos nove “melhores amigos do vô” – foi outro forte indício de que o paranaense de Quatiguá é uma dessas pessoas especiais, capazes de dedicar a vida a um trabalho manual minucioso, que pouco interesse provoca na maioria das pessoas, a não ser quando se deparam com o inesperado.

Produto está em toda parte do País, de Norte a Sul

Foi em 2002 que um amigo mostrou uma cadeira que tinha feito e propôs uma sociedade. Sem meias palavras, ele deixou claro seu desgosto. “Estava tudo errado”, lembra rindo. A sociedade durou seis meses, mas seu Gildo nunca mais parou. Meteu a mão nas ferramentas e foi desbravando os caminhos então inexistentes, em busca de materiais e peças que se adaptassem melhor e garantissem o principal, o conforto e a segurança dos cachorros. “Acredito que na vida tudo pode ser melhorado, em qualquer profissão”, afirma. “Custou tempo, mas curioso que sou ia em tudo que é loja de ferragens e de consertos para ver o que achava para usar”.

Desde então foram mais de 2.200 cadeirinhas, todas numeradas, com projeto que fica arquivado para o caso de qualquer peça precisar ser reposta. Chegou a ter 32 encomendas ao mesmo tempo e tem cadeirinhas suas em todo canto do Brasil, do Rio Grande do Sul a Rondônia, passando por Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo. O esmero está em cada detalhe. Nos parafusos inoxidáveis que não enferrujam nem quando o cachorro gosta de mar; nos tubos de alumínio com as dimensões perfeitas para cada bicho, nas rodas leves, nas auto travas para garantir que nenhum acidente vai acontecer ou na ficha de cada cliente, com todas as medidas milimetricamente checadas – peso, altura das costas, altura do peito ao chão, distanciamento entre patas.

Cliente especial — Até fornecedor exclusivo de peças ele tem. É o caso das rodas de carrinhos de bebês, que compra direto da Burigotto, fábrica pioneira na fabricação de carrinhos e cadeiras para crianças. “Não tem no mercado; todo mundo usa as maciças, que são pesadas. Minhas cadeirinhas já foram consideradas as melhores, mas agora o mercado mudou”, pontua.

No dia de nossa conversa, Seu Gildo estava preocupado e em vários momentos a voz ficou embargada pela emoção das lembranças e dos problemas que enfrenta agora que o movimento diminuiu por conta de uma concorrência que, embora não entregue o melhor produto, tem seus meios de chegar aos clientes de forma mais barata. Mesmo que baste olhar para as cadeirinhas que ele faz para perceber a qualidade de cada peça, é difícil concorrer com os preços de uma produção industrial.

“Uma senhora mostrou a cadeirinha que comprara em uma loja de departamento. Não era nem caso de Procon, mas de polícia”, diz. “Eu tô ferrado, diminuiu tudo. Tem muita consulta, mas pouca confirmação de compra. As pessoas pesquisam e compram pelo celular, sem ver o produto”, completa, mostrando com orgulho os pequenos fechos de metal para bonés de luxo, que ele usa para manter a cadeirinha nos cães. “Compro da mesma fábrica desde o começo porque são os melhores. Cheguei a comprar o estoque todo que encontrei em São Paulo, Recife e Porto Alegre”, conta sobre a peça fabricada pela Altero, especializada em pequenos metais para acessórios, bijuterias e bolsas.

Outra história, aliás, de alegrar o coração. Um belo dia Seu Gildo soube que a fábrica não tinha mais a forma matriz para fazer as tais peças e ficou uma semana matutando o que iria fazer. Até decidir ligar para a fábrica. “Contei minha história e a moça disse que iria olhar no almoxarifado. Liguei a tarde novamente e não é que ela achou a fôrma e estava perfeita… agora eles fazem só pra mim”, conta, enquanto novamente a emoção embarga a voz.

Um dog alemão de 60 Kg foi o maior cachorro a receber uma cadeirinha. Mas, hoje em dia ele não faz para cães muito idosos ou acima de 30 kg, por conta do risco de não dar certo. Seu Gildo, no entanto, nunca fez para um cachorro seu. Quando soube que um deles, já velhinho e doente, teria a pata amputada não titubeou. “Eu não iria prolongar o sofrimento dele. Foi terrível pra mim, mas fiz o melhor pra ele”, lembra e logo emenda sobre seu atual “melhor amigo”, o Marley. “Meu cachorro tá sempre comigo, é amor total… não sei quem gosta mais de quem”.

Gildo fala dos cachorros e das cadeirinhas e seu rosto se ilumina. “Quando atendi o primeiro cachorro, um pequenininho, adivinha quem chorou quando ele saiu correndo? Minha alegria é ver o cachorro sair andando.”