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Imagem meramente ilustrativa (Freepik)

“Pai/Mãe é quem cria” é um ditado muito usado em nossa sociedade, porque remete a uma realidade bastante comum: a dos pais e mães biológicas(os) que encontram uma ou mais pessoas dispostas a cuidar de seus filhos e filhas como pais ou mães. Em muitos desses casos, o sentimento de paternidade ou maternidade se materializa no papel, em uma certidão de nascimento que pode ter dois pais ou duas mães registradas. O termo para isso é “filiação socioafetiva”.

Nos últimos anos, o número de pessoas que têm buscado a Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR) em Maringá com o objetivo de registrar uma situação de filiação socioafetiva só aumenta. Em 2020, uma pessoa procurou a instituição com esta demanda (saiba mais sobre este caso ao final da matéria) e nos anos seguintes mais casos foram atendidos.

“Temos visto um grande interesse de pessoas que têm famílias constituídas para além do ‘padrão’ em oficializar a existência do vínculo familiar. São famílias formadas a partir da união de pessoas vindas de uniões anteriores e até mesmo pessoas já adultas que tiveram como referência de pais e/ou mães pessoas além do vínculo biológico”, explica a assistente social Marilia Wonsik, que atua na sede da DPE-PR em Maringá. “Para além da inclusão de um sobrenome, o processo de reconhecimento de filiação socioafetiva expressa o reconhecimento da pluralidade das famílias, e proporciona a garantia de direito desses sujeitos”. 

Cabe explicar que a filiação socioafetiva não se confunde com a adoção por algumas razões. Uma delas é que na filiação socioafetiva é necessário demonstrar a existência de um vínculo afetivo entre as pessoas que serão pai/mãe e filho/filha. É o caso de quem já é criado(a) como se fosse um filho(a), enquanto na adoção esse vínculo, por vezes, é construído após o registro. Outra diferença é que o reconhecimento da filiação socioafetiva pode ser realizado de maneira administrativa ou judicialmente, enquanto a adoção só pode ser realizada na Justiça. Por fim, na adoção há a ruptura com os genitores biológicos – que perdem o poder familiar sobre os(as), até então, filhos(as) – mas na filiação socioafetiva esse vínculo pode ser mantido. É assim que muitas pessoas podem ter o nome de dois pais ou duas mães na certidão, o(a) biológico(a) e o(a) afetivo(a).

A possibilidade de reconhecimento de paternidade ou maternidade socioafetiva de forma administrativa está regulamentado no Provimento 83/2019 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mas o Código Civil, em seu artigo 1.593, também dá margem à regulamentação ao definir que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. 

“O ‘outra origem’ abarca uma gama de possibilidades e se ajusta à nossa realidade, de famílias que são formadas por relações de afeto”, explica a defensora pública Caroline Nogueira Teixeira de Menezes, que atende a área de Família e Sucessões na sede da DPE-PR em Maringá. “E o conceito de família deve, de fato, se balizar através desse princípio da afetividade, que é oriundo da dignidade da pessoa humana. Então, a partir da Constituição Federal e do Código Civil acrescenta-se ao parentesco civil a expressão ‘filiação socioafetiva’ para designar relações afetivas que não vêm de nenhum vínculo biológico ou legal”, afirma a defensora.

Como se dá uma ação de reconhecimento de filiação socioafetiva

Geralmente, em uma ação assim, são solicitadas provas que comprovem a existência do vínculo afetivo e de proteção entre pai/mãe e filho(a), que podem ser documentos ou testemunhas. O reconhecimento pode ser feito perante os oficiais de Registro Civil das pessoas naturais, desde que a pessoa seja maior de 12 anos, ou judicialmente. 

“É necessário demonstrar esse estado de filiação, que, geralmente, se revela pelo tratamento,  nome, fama, isto é, na forma como as pessoas se identificam enquanto pai, mãe e filhos ou filhas, na demonstração de afeto, inclusive no meio social, no cumprimento dessas pessoas que se pretendem pais ou mães nos seus deveres de guarda, educação e sustento. Enfim, pelo comportamento que essas pessoas adotam no cotidiano”, explica a defensora.

O Provimento 83/2019 do CNJ dá alguns exemplos que documentos que podem ser usados para comprovar o vínculo: “apontamento escolar como responsável ou representante do aluno; inscrição do pretenso filho em plano de saúde ou em órgão de previdência; registro oficial de que residem na mesma unidade domiciliar; vínculo de conjugalidade – casamento ou união estável – com o ascendente biológico; inscrição como dependente do requerente em entidades associativas; fotografias em celebrações relevantes; declaração de testemunhas com firma reconhecida”.

Em Maringá, reconhecimento foi feito mesmo após a morte das duas mãe

Um caso bastante peculiar foi atendido pela DPE-PR em Maringá: o inspetor de escola Renan Vinícius da Silva, de 30 anos, procurou a instituição para retirar o nome da genitora de sua certidão de nascimento e incluir os nomes de suas duas mães de criação, isso tudo após a morte das duas mulheres, que o criaram juntas desde quando ele tinha 45 dias de vida. Em janeiro deste ano, ele pôde finalmente pegar a certidão de nascimento que registra, de fato, a sua história.

“Eu fiquei órfão em 2015, das duas mães, num intervalo de três meses entre uma e outra. E então começou uma crise muito grande na minha mente, porque as minhas mães estavam mortas, mas no registro de nascimento minha mãe era a mulher que me gerou. E essa questão só podia ser resolvida por mim, sem elas”, relembra Renan.

Em 2020 ele passou a ser atendido pela DPE-PR em Maringá, onde começou, então, um processo bastante complexo, em que, além da retirada do nome da genitora, era necessário incluir os nomes de duas mulheres, já falecidas, como as mães de Renan. 

“Quando minhas mães eram vivas, a filiação socioafetiva ainda não era algo possível. Quando eu era criança, e se falava em regularizar minha situação, ambas brigavam por quem ia ser a mãe no registro. E, para mim, colocar o nome de apenas uma delas não era uma opção, porque não retratava a realidade e gerava esse conflito entre elas”.

A solução foi buscar fotos e testemunhas para comprovar o vínculo afetivo. A família viveu desde a chegada de Renan na mesma casa, e vizinhos podiam comprovar a história. Os familiares da genitora e das duas mães também foram convocados a se manifestar no processo. Da parte da genitora, que era também sobrinha de uma das mães, ninguém contestou. Segundo Renan, os familiares nem mesmo compareceram às audiências. Da parte da outra mãe, todos os familiares chamados a se manifestar no processo colaboraram, compareceram às audiências e testemunharam o vínculo entre as duas mães e Renan.

Perguntado sobre qual foi o sentimento ao pegar a nova certidão, Renan declara que essa foi “uma das, senão a melhor e maior conquista da minha vida, porque minha história tornou-se real e oficial”. Ele chegou a estudar Direito para encontrar uma forma de adequar sua certidão de nascimento a sua verdadeira história de vida, mas agora trabalha em outra área com a sensação de missão cumprida. “Foi um processo reparador, sobretudo. Ajudou até no luto”.

Atendimento da DPE-PR

Se você quer realizar o reconhecimento de filiação socioafetiva, a área de Família e Sucessões da DPE-PR pode te auxiliar no procedimento. Procure uma de nossas sedes ou entre em contato com o Posto da Defensoria na Assembleia Legislativa do Paraná, que atende todo o estado em ações extrajudiciais.