Valquir Aureliano – A artesã Marisa Horst: trabalho inclui limpar

O encantamento feminino por bonecas quase nunca acaba na infância. Muitas mulheres mantêm por toda vida o vínculo afetivo com este brinquedo, que se torna muito mais do que um presente de criança. Na tentativa de resgatar suas histórias e sonhos infantis, elas recorrem ao restauro de bonecas, que chegam de todos os cantos do Brasil, e do mundo, para o endereço no bairro Uberaba, em Curitiba. É de lá que a artesã Marisa Horst recupera lembranças e afetos.

A boneca mais antiga que ela restaurou tinha aproximadamente 80 anos. “A senhorinha não desgrudava dela e não deixava ninguém mexer. A filha me trouxe com a condição de eu entregar de volta no outro dia e não mudar nada da original”, conta.

Nem sempre, porém, é possível mantê-las iguaizinhas, especialmente as roupas e os cabelos, já que a maioria é da década de 1980 e foi customizada pelas tesouras criativas da infância. “As que mais chegam são Meu bebê, Mãezinha, Gui Gui e Beijoca”, percebe Marisa.

Ela ressalta que a ideia principal da restauração de bonecas é doá-las para crianças carentes, uma ação da ONG criada em homenagem a sua sobrinha, Maria Fernanda, vítima de câncer aos 9 anos. “Pensamos também em fazer um bazar e reverter o dinheiro para crianças com problemas de saúde. Já deve ter umas 200 bonecas prontas. A ideia é chegar a mil.”

O tempo para o voluntariado, porém, foi ficando cada vez mais escasso, depois que o trabalho de restauro começou a ficar conhecido. Ele teve início há dez anos, mas a procura aumentou em 2017 com a divulgação nas redes sociais, iniciativa da neta.

“Enquanto eu pintava o rostinho das bonecas e pregava olhos de botão, ela me olhou e disse: ‘Vó, estamos bonecando com o coração’, e pediu para criar uma página com esse nome. Eu deixei. Em poucas horas já tínhamos mais de cem curtidas. Logo, chegamos a mil e, depois, a sete mil seguidores”, recorda Marisa, que faz todo o trabalho de restauro sozinha. “É complicado largar algo tão importante nas mãos de outra pessoa”, argumenta.

A catarinense, que vive em Curitiba desde os 13 anos, já recebeu pedidos da Alemanha, Suíça, Holanda e República Dominicana, assim como de vários estados brasileiros.

O tempo e o custo do trabalho dependem do estado original da boneca. Algumas ficam prontas em poucos dias, já outras podem levar meses. Meio ano foi o prazo máximo que ela levou para entregar uma encomenda. “Me apeguei tanto que não queria mais que ela fosse embora”, admite.

A limpeza costuma ser a fase mais difícil e demorada, explica a bonequeira. Para retirar manchas, tintas, corretivos e outras “linhas de expressão” de Barbies e Suzis, ela se vale de água oxigenada, álcool, bicarbonato de sódio, pomadas e sol, muito sol. Além de muita paciência e amor.

O resultado impressiona. “Cada boneca tem uma história linda de amor, e são tantas que emocionam. Algumas engraçadas, outras tristes e muitas saudosas”, diz a artesã.

ANTES E DEPOIS

As histórias

A paixão de Marisa pelas bonecas vem desde menina, quando se enfiava debaixo das máquinas de costura da mãe e da avó a buscar retalhos para tecer novas roupas para suas bonecas. A primeira amiga de pano que confeccionou foi para sua filha, após os ensinamentos breves de uma vizinha.

Desde então, quase todas as suas clientes são mulheres. Os homens aparecem para solicitar serviços e presentes a suas filhas ou mães. “Essa semana um rapaz de São Paulo me disse que vem trazer sua coleção de Susis para restauro. Nenhum outro homem assumiu que a boneca é sua. Ainda existe muito preconceito com relação ao brincar de boneca entre os meninos”, lamenta.

A artesã lembra que, no tempo em que confeccionava bonecas de pano, houve um senhor que comprou sua coleção inteira. “Ele ia toda sexta-feira e perguntava se tinha alguma boneca diferente. Então, comprava todas. Ele era sério e morríamos de curiosidade de saber por que ele comprava tantas bonecas; mas nunca soubemos.”

Tem história de boneca sem as pernas, sem os braços, só com a cabeça ou sem o enchimento do corpo. Tem até quem salvou a boneca da enchente, mas não se desfez dela.

“No lugar onde eu morava dava enchentes e perdíamos tudo. Em 1995, quando as águas estavam baixando, ela estava lá no meu quarto, cheia de barro. Eu lavei e guardei”, revela a advogada Silvana Meira, de Curitiba. “Essa boneca foi meu pai quem me deu. Uma boneca muito simples e com um valor que não tem preço”, garante.

Aos 44 anos, Relíquia, como é chamada a boneca, acompanha Silvana desde a primeira infância, e agora está de visual novo. “Vi o trabalho da Marisa pelo Facebook e foi tudo extremamente perfeito. Ela é detalhista, caprichosa e muito simpática. Foi maravilhoso”.

A advogada diz que, depois do restauro, Relíquia – que antes ficava no guarda-roupas – passou a estar exposta no seu quarto. “Não cansava de admirá-la. Mas minha filhinha só queria pegar, então guardei no guarda-roupas de novo”, confirma.

Relíquia antes e depois

Seis meses

“É uma boneca que já tem 60 anos, pois mamãe ganhou quando tinha 5 anos. Sua única boneca, lembrança da infância. Ela estava sem as pernas e com o corpinho rachado. Vi o trabalho da Marisa no Facebook e resolvi encaminhar a Linda (nome da boneca) para que ela pudesse avaliar e restaurar. Foram seis meses de um trabalho delicado, procura das perninhas, clareamento, dedicação e amor”, percebe Graziela Blemer, que mora em Curitiba.

A mãe, Valéria Freixo, achava que a Linda não tinha mais jeito e a guardava escondida dentro do armário. Depois do restauro, Linda mora em cima da cama de Valéria. “Ela ficou perfeita. Minha mãe emocionada por ter sua boneca de volta. O trabalho da Marisa é incrível.”

Linda ante e depois

De longe

“O nome do meu tesouro é Belinda. Ela tem 58 anos e um valor inestimável; foi um presente que ganhei do meu pai quando fiz 2 anos”, revela a farmacêutica aposentada Maria Lúcia Rodrigues, da cidade de Catanduvas, em Santa Catarina, a quase 400 quilômetros de Curitiba. “Já pensava em restaurar, mas precisava encontrar uma profissional de confiança, então eu vi alguns trabalhos da Marisa, todos maravilhosos.”

Foi quando Lúcia enviou Berlinda pelo correio. Dois meses depois, ela estava de volta. Também via correio. “Marisa superou minhas expectativas. O carinho que ela teve ao despachar a boneca nem se fala. Trabalho perfeito. Gostaria de um dia conhecer pessoalmente essa mulher, cuja missão é devolver nossos sonhos.”

Belinda ante e depois

O papel social das bonecas

Este apego tem explicação. “Bonecas são brinquedos que marcam a infância e a história de muitas pessoas. Elas são, na maioria das vezes, o elemento central das brincadeiras de uma criança, e sua própria representação. Através delas é possível projetar desejos, alegrias e angústias”, observa a psicóloga Kalini Boing.

“Na vida adulta, as bonecas são capazes de ativar a memória emotiva, despertar sentimentos profundos e a lembrança de uma vida inteira. Guardar uma boneca por muitos anos significa muito mais do que guardar um objeto. Restaurar essa boneca significa restaurar sonhos, lembranças e saudades.”

A psiquiatra Patrícia Piper Ehlke, especialista em Psiquiatria e Psicologia Perinatal, explica que a ligação das meninas com as bonecas é construída socialmente, “a partir do que entendemos na nossa cultura sobre ser mulher e ser homem e, por consequência, desempenhar o papel de mãe e de pai”.

“Como acreditamos numa masculinidade ligada à virilidade, força e ao ambiente externo, atribuímos aos meninos brincadeiras compatíveis com o desenvolvimento dessas aptidões. Como desejamos que as meninas tenham valores como delicadeza, cuidado e estejam no ambiente doméstico, atribuímos a elas brincadeiras que passam pelo cuidado da casa e de bebês”, afirma a psiquiatra.

As brincadeiras, enfatiza, são uma forma de desenvolver habilidades e incorporar padrões da própria sociedade, oferecendo brinquedos e brincadeiras diferentes para meninos e meninas e ensinando aos adultos papéis de gênero.

“Os meninos são cerceados de participar de brincadeiras que envolvam o cuidado, o ambiente doméstico e bonecas. Assim, não desenvolvem as habilidades relacionadas a essa esfera da vida e passam a entender que cuidar, a partir do brincar de bonecas e de casinha, é coisa de menina. Essa lógica que delimita as brincadeiras infantis é o reflexo da nossa sociedade patriarcal que visa a manutenção de papéis de gênero delimitada dentro de um padrão”, conclui a médica.

 Foto: Valquir Aureliano

 

Marisa Horst: trabalho inclui limpar, desenhar, costurar