Não há demonstração documental inequívoca para o evento que a tradição localiza no dia 31 de outubro de 1517, às portas da igreja do castelo de Wittenberg, na Alemanha. Ali, o monge católico Martinho Lutero teria afixado a marteladas suas 95 teses. Sua intenção era produzir uma transformação na instituição a que pertencia, reavivando velhas críticas e propondo outras. O músico, linguista e professor pregava um retorno aos valores da igreja cristã dos primeiros tempos depois da morte de Jesus. Era contra a religiosidade mercadológica e monopolizada por uma elite clerical corrupta centrada em Roma, afeita aos largos poderes que a política dos homens podia trazer. A Reforma Protestante foi mesmo uma revolução.

Os reformadores que vieram depois de Lutero foram muitos e de diferentes procedências. Discordavam veementemente uns dos outros, trocavam acusações, mas todos rejeitavam a Igreja Romana, seu autoritarismo e venalidade. As personagens da Reforma, com certeza, foram pessoas cheias de defeitos. Quem não é? Mas sua militância e doutrina, catalisadas pelos contextos econômicos e políticos do amanhecer da Era Moderna, contribuíram para revolucionar o pensamento ocidental. O “indivíduo”, conceito muito novo, assume lugar de destaque, agora mais do que nunca, pois passaria a ser responsável pela sua consciência. O monopólio dos padres sobre a confissão de pecados e a pregação da “Palavra” significava controle sobre as mentes e corpos dos fiéis. A doutrina protestante do “sacerdócio universal” tornava, em tese, cada indivíduo responsável, pessoalmente, por confessar-se diretamente a Deus e aprender a “sã doutrina”. A religião passava a ser de foro íntimo.

Traduzir a bíblia para as línguas modernas, podendo ser apreciada individualmente — prática revolucionária na história do livro e da leitura — significava expansão do conhecimento e maior liberdade. Os Protestantes gostavam de escola, de ciência e de livros! Esforços hercúleos foram feitos para que mais gente soubesse ler. Contudo, também significava responsabilização pessoal para com o aperfeiçoamento da vida familiar e coletiva. Nesse sistema de crenças, a centralidade de um líder religioso deveria ser mínima. Os reformadores não tinham intenção de que suas lições ficassem circunscritas ao templo. Esses valores são de suma importância para a consolidação das noções republicanas de direitos e igualdade naturais. Na esfera política, levaria à seguinte pergunta: por que obedecer cegamente a um governante, como se dele emanasse o poder? Esse questionamento fomentaria contestações ao Absolutismo Monárquico. A doutrina revolucionária da “soberania popular” é, em parte, tributária desse pensamento protestante. Soberania popular é “poder do povo” e “poder do povo” é democracia.

O lema latino semper reformanda quer dizer que a igreja precisava seguir reformando-se. De maneira nenhuma isso significa abandonar conquistas ideológicas fundamentais, retornando à antiquada doutrinação e submissão aos velhos dogmas. Como é possível que hoje alguns reivindiquem menos direitos, atentando contra a democracia? Ao relembrarmos a Reforma Protestante, precisamos pensar responsavelmente e com aguda consciência sobre a luta por mais liberdade. Precisamos negar insanas doutrinas, ventos autoritários, guardando a fé em dias melhores para o nosso povo e agindo para que isso aconteça.

Daniel Carvalho de Paula é professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutorando, Mestre, Licenciado e Bacharel em História pela USP