“Ele vos mostrará, no andar superior, uma grande sala” (Mc 14,15)

Pe. Matheus da Silva Bernardes
Imagem de Gordon Johnson por Pixabay

Imagem de Gordon Johnson por Pixabay

Poucos dias depois da cerimônia de abertura dos jogos olímpicos de Paris, a DJ francesa Bárbara Butch sofreu uma série de ameaças, inclusive contra sua própria vida, por ter protagonizado com outros artistas uma cena que supostamente evocaria a última ceia de Jesus com seus discípulos.

Chamou muito a atenção, em um primeiro momento, a reação do Episcopado francês o qual, mediante uma nota, inclusive publicada no site Vatican News, repudiava a cena e a suposta iniciativa da direção artística da cerimônia de abertura. Embora, o cerimonialista, Thomas Jolly, tenha declarado que a ideia era evocar uma grande festa pagã vinculada aos deuses do Olimpo, monte sagrado cujo grande festival era comemorado com os jogos olímpicos na Antiguidade, a extrema direita, não só francesa, continuou acusando a organização do evento de blasfêmia.

Será?

Na tentativa de elucidar a polêmica, é conveniente recorrer ao pensamento de Paul Ricoeur, hermeneuta também francês: além de resgatar o fato no texto, é fundamental pensar o fato do texto. Um equívoco muito grande é pensar que o texto da última ceia, presente nos quatro evangelhos e na primeira carta de Paulo aos Coríntios, narre exatamente o que aconteceu naquela ocasião. Antes que haja “reclamações”, a última ceia, sim, aparece no Evangelho segundo João – o evangelista só omite a instituição da Eucaristia em seu texto.

É bem sabido que os textos bíblicos estão repletos interesses comunitários, pastorais e teológicos, por isso, vale a pena insistir, não podem ser lidos apenas em uma perspectiva jornalística – se é que o jornalismo consegue narrar fatos de forma isenta. Todos os textos bíblicos que apresentam a última ceia de Jesus com seus discípulos, em nenhum momento, apontam com exatidão o que lá aconteceu, mas expressam a fé viva de uma comunidade em Jesus de Nazaré.

Nesse sentido, a menção ao “andar superior”, como é possível ler no Evangelho segundo Marcos, não é apenas um detalhe. Desde o início do livro, Jesus de Nazaré é apresentado pelo evangelista como o Messias pobre, aquele que vive entre as empobrecidas e os empobrecidos, que faz refeição com as pecadoras e os pecadores e que recusa toda e qualquer honraria. Ele não é o Ungido glorioso, que muitos de seu tempo aguardavam, mas aquele que se despojou até a morte de cruz.

Tendo subido a Jerusalém para a Festa da Páscoa, Jesus pede a seus discípulos que busquem um local para que eles possam cear. É bem sabido que os judeus celebram a Páscoa, o pessach da escravidão do Egito para a liberdade da terra prometida, em uma ceia familiar. Não se deve esquecer que o próprio Jesus formou com “quem fizer a vontade de Deus” (Mc 3,35) sua família; logo, sua ceia pascal iria ser celebrada com essa família, com seus discípulos. Mas por que a menção ao “andar superior”?

Os peregrinos que chegavam a Jerusalém para as festividades do calendário judaico, especialmente as empobrecidas e os empobrecidos, tinham como locais de refeição as salas do “andar superior” das hospedarias. Tratava-se de refeitórios simples, salas comuns, em que os peregrinos podiam fazer suas refeições, o que é perfeitamente coerente com a apresentação de Jesus, o Filho de Deus pobre. Se ao longo de sua vida, ele fazia suas refeições com as empobrecidas e os empobrecidos, com as pecadoras e os pecadores, por que teria sua última ceia em uma situação diferente?

Ao acusar a organização da cerimônia de abertura dos jogos olímpicos de Paris de blasfêmia, porque na cena mencionada mais acima haveria uma simulação da última ceia de Jesus com seus discípulos, é preciso se perguntar qual imagem da ceia estaria sendo evocada. Ao parecer, tal imagem seria aquela pintada por Leonardo Da Vinci a qual já causou outras tantas polêmicas mundo afora. Entretanto, segundo o relato bíblico, a imagem do pintor renascentista é apenas um belo quadro, não a expressão da fé viva da comunidade de discípulas e discípulos de Jesus. Conforme o texto marcano, o Nazareno teve sua última ceia entre aquelas e aqueles com quem conviveu toda a sua vida, em uma sala no “andar superior”, e não em um ambiente como o pintado por Da Vinci. Nesse sentido, o fato do texto é muito mais eloquente que meramente o fato que teria sido narrado no texto e retratado em uma pintura.

Enfin, a polêmica em torno da cena que supostamente emularia a última ceia de Jesus com seus discípulos na abertura dos jogos olímpicos é mais uma das tantas em que os desavisados de plantão – motivados pela extrema-direita e seus exércitos digitais – acabam caindo. Contudo, uma pergunta de fundamental relevância deve ser feita: tal polêmica prosperaria se a catequese, sobretudo na Igreja Católica, estivesse mais vinculada ao texto bíblico que às representações artísticas desse texto? Haveria tanta polêmica se o fato do texto fosse mais central na vida das católicas e dos católicos que o fato no texto?

Basta relembrar que o texto bíblico, sim, é inspirado pelo Espírito Santo e contém a Revelação; já a arte renascentista de um mestre como Leonardo Da Vinci, por mais bela que possa ser, é mera e simplesmente arte, nunca Teologia.