A Bíblia veio para libertar e proteger os mais frágeis e deve ser interpretada nessa dimensão. (Imagem: Pixabay) 

É muito importante, ao recebermos conteúdos pela internet, fazermos uma boa análise de como os avaliamos. Recentemente, circulam em redes sociais alguns materiais retratando erroneamente a questão do estupro na Bíblia. Em muitos, se diz equivocadamente que a Bíblia justificaria o estupro em nome de Deus. Ou, ainda, que a mulher estuprada deveria ser considerada pecadora. Para desmistificar esta polêmica, fomos conversar com um dos maiores pesquisadores em Sagradas Escrituras do país, o Prof. Dr. Ildo Perondi.

Perondi é doutor em Teologia Bíblica, assessor do Centro de Estudos Bíblicos e membro de corpo editorial da Estudos Bíblicos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), além de membro associado da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia Bíblica, pesquisando temas como a História de Israel, o Antigo e o Novo Testamento, a Espiritualidade Bíblica, a Ecologia e o Ecumenismo.

Acompanhe:


Reprodução de conteúdo distribuído em redes sociais, com recortes de textos bíblicos: é preciso tomar cuidado com interpretações distorcidas.

Quem participou da entrevista?

Ana Beatriz Dias Pinto
Ana Beatriz Dias Pinto, entrevistando pelo Blog Teologia e Inclusão


Frei Ildo Perondi, doutor em Bíblia e professor na PUCPR

Blog Teologia e Inclusão: Professor Ildo, algum texto contido na Bíblia relativiza o estupro?

Perondi: Os textos bíblicos não justificam o estupro, mas o condenam. A condenação principal é contra o homem estuprador, tanto que a condenação é “à morte”. O texto bíblico distingue dois tipos de estupro: no campo e na cidade. Quando ocorrido no campo, só o homem deveria “ser morto”. Ou seja, o texto bíblico defende a mulher, porque ela é mais frágil. É bom lembrar que o livro do Deuteronômio tem uma preocupação com os mais frágeis (a tríade social: órfão, viúva e estrangeiro – 11 vezes juntos) ou o pobre e assalariado (Dt 15). Então, no campo, a mulher estuprada que gritasse pedindo por socorro poderia não ser ouvida por alguém, então culpa-se o estuprador somente. A ela não se atribui nenhuma culpa “porque ela não tem um pecado que mereça a morte” (22,26). Contudo, se o estupro ocorresse na cidade, ambos seriam condenados, pois a mulher ao ser atacada, poderia gritar e certamente seria ouvida e socorrida. As casas da época eram próximas e não havia os apartamentos ou casas grandes como as nossas de hoje.

Blog: Como podemos entender a dimensão do papel da mulher e do estupro na Bíblia, especialmente no Antigo Testamento?

Perondi: Os textos foram escritos numa época em que as relações sexuais eram permitidas somente dentro do casamento. E também devemos entender que naquele tempo a mulher não contava nada, não tinha espaço na sociedade. Não havia os casamentos como hoje. As moças eram vendidas aos pretendentes, que deveriam pagar um valor ao pai. Logo, se a mulher já tivesse tido relações sexuais, perderia seu valor econômico. Assim, quem teria tido relações com ela deveria se casar, isto é, pagar o valor econômico ao pai, e assumi-la pelo resto da vida, para que ela não fosse jogada na rua. É importante notar que Jesus supera muito este rigor da Lei. Apresenta o perdão, a acolhida, a valorização dos marginalizados, das mulheres; convive com os excluídos e pecadores.

Blog: Poderia nos dar exemplos disso, dessa novidade do Novo Testamento?

Perondi: Em Lucas 7,36-50, Jesus está na casa de um fariseu e entra uma mulher considerada “pecadora”, possivelmente uma prostituta. Esta mulher vai aos pés de Jesus e lava-os com suas lágrimas, enxuga-os com seus cabelos e os unge com perfume. Enquanto o fariseu julga e acusa a mulher (e até Jesus), Jesus acolhe a mulher e até a usa como exemplo do muito amor que praticou.

Em Jo 8,1-12, os mestres da Lei trazem a Jesus uma mulher que foi flagrada em adultério. Os mestres da lei queriam que Jesus a condenasse. E Jesus disse “Quem não tiver pecado atire a primeira pedra”. E eles foram se retirando, um a um, a começar pelos mais velhos. Jesus acolhe a mulher, salva a mulher da fúria do rigor da lei.

Jesus oferece a compaixão e o acolhimento. E pergunta: “quem te condenou?”. A mulher fala apenas duas palavras: “Ninguém, Senhor”. E com isso qualifica o grupo dos mestres e Jesus. Os mestres rigorosos são “ninguém”; Jesus, que acolheu, é o “Senhor”.

Portanto, os textos do Deuteronômio devem ser lidos à luz do Novo Testamento. Jesus mostrou-se sempre acolhedor das pessoas excluídas e marginalizadas pelo sistema da época. Ao contrário, mostrou-se duro e condenou sempre os opressores, sejam eles pessoas, grupos ou o sistema.

Blog: Como podemos então interpretar a Bíblia e a questão do estupro, na atualidade?

Perondi: Hoje seria lamentável que alguém usasse a Bíblia para acusar as mulheres, sobretudo quando são estupradas, quando sofrem violência do mais forte. A Bíblia tem um projeto em defesa da vida, sobretudo quando ela é ameaçada, quando os mais fracos são pisados e humilhados. Jesus diz que veio “para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10). O problema não é a Bíblia, mas a maneira como é lida e interpretada. Os mestres da lei usaram a Bíblia para acusar a mulher; Jesus usou a mesma Bíblia para acolhê-la. As autoridades usaram a Bíblia para matar Jesus; Jesus usou a mesma Bíblia para anunciar um projeto novo, libertador, acolhedor… Com a Bíblia hoje se mata e condena, mas isso é manipulação. A Bíblia veio para libertar e proteger os mais frágeis.

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Ana Beatriz Dias Pinto, é comentarista convidada do blog e nos traz reflexões sobre temas atuais e contextualizados sob a ótica do universo religioso, de maneira gratuíta e sem vínculo empregatício, oportunizando seu saber e experiência no tema de Teologia e Sociedade para alargar nossa compreensão do Sagrado e suas interseções.