Um balé

Roberta D´Albuquerque

“Eu não aguento felicidade não”. Me disse uma analisanda hoje de manhã cedinho. Não é a primeira vez que escuto essa frase aqui no consultório. É comum até escutar. Sempre que ela aparece, costumo tomar nota, me interessam as construções. “A felicidade pra mim é uma coisa insuportável”, “Eu não dou conta da falta de angústia”, “A alegria me machuca”, “Tá dando tudo certo demais, alguma coisa errada tem que acontecer”.

Ontem eu cheguei em casa umas 7 e pouquinho da noite. Encontrei a minha filha mais nova no corredor e tive a sensação de que ela é a pessoa mais bonita do mundo. Me contou do fim de semana e embora eu tenha prestado a maior atenção no que dizia, dividi o cérebro em dois. Metade escutava a Sofia contar que aproveitou a noite do sábado ouvindo música na varanda, que tomou suco na taça desde a sexta à noite (como eu fazia no meu aniversário quando menina e faço até hoje) e a outra metade assistia o movimento da franja vermelha de Sofia balançar na testa.  Se dividia no meio, ia pro lado e pra frente, voltava pra metade, dava uma voadinha enquanto ela se movimentava ao som da própria voz. Um balé. Daria um curta metragem pra se ver em tela de cinema. Eu pagaria o ingresso todo dia sem reclamar, duas vezes por dia se desse a sorte de encontrar lugar na sala.

Eu senti um amor tão profundo, tão profundo. Perguntei o que ela queria jantar e pedimos um Mc. Era pra chegar em 20 minutos. Esqueci embalada pela conversa da Sofi, lembrei quando já tinha passado quase uma hora já. O pedido foi cancelado sabe-se lá por que. A gente resolveu não pedir outra coisa, tava tarde já. Fritamos um ovinho, um pão na frigideira e vai ficar melhor que o Mc. Estava feito o acordo. Quando encostei a mão no terceiro ovo, os outros dois já no calor do fogão, o danado quebrou como se a casca fosse de vento. Enfiei meu dedo no líquido escuro que morava lá, a cozinha foi invadida pelo cheiro de podre em coisa de menos de meio segundo. O certo mesmo seria jogar meu dedo fora tamanha a contaminação olfativa.

Fez-se aquele dilema. Cuido de me livrar disso tudo antes que o apartamento de derreta de horror ou cuido dos outros na frigideira pra não estragar o único jantar da casa. Sofi alcançou uma sacola e eu joguei a bandeja (era o último ovo) com a casca e o líquido e tudo. Levei no lixo de fora do apartamento. Lavei minha mão como quem dá banho em um monstro que de uma hora pra outra precisa sair da lama e aparecer numa festa de casamento, esfregando, ensaboando, deixando a água encostar e de novo e de novo e de novo. Ela correu pra abrir a varanda, mexeu o ovo, colocou o sal.

A gente deu risada do caos, assou o pão, passou café e mandou graças pra todas as galinha do universo. Fiquei com vontade de contar essa história pra minha analisanda. Porque, às vezes, no meio dessa sensação de que a vida é massa vem mesmo um ovo podre, mas às vezes nem vem. Às vezes cancelam uma entrega, mas a conversa tá tão boa que tu até prefere fazer de outro jeito. Pãozinho com ovo, sabe? Precisa inventar muito não. Boa semana, queridos.

@robertadalbuquerque