porto alegre alagada
Vista área de Porto Alegre (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Quando o despertador tocou, às 6 horas, tinha tudo pra ser apenas mais um daqueles dias arrastados do outono no Sul. O céu escuro e as primeiras trovoadas prenunciavam o dia preguiçoso e a vontade de que as próximas horas passassem rápido pra voltar pra casa, pegar a cuia de chimarrão e observar o movimento dos pássaros se recolhendo ao final do dia entre as araucárias.

Eram necessários apenas pequenos protocolos pra passar o tempo e marcar a vida: preparar a mesa do café com a toalha de crochê confeccionada nas noites do inverno anterior, a louça que pertenceu à bisa, o queijo do sítio do vizinho e o que havia sobrado da fornada de pão caseiro produzido dias antes. Depois, dar comida pros guapecas não fulminarem ninguém com olhar de bichos sem dono, deixar os guris na escola e seguir pra mais uma jornada de labuta.

Tudo devidamente cronometrado porque a vida seguia uma rotina calculada e precisa até aquele momento. Um beijo rápido no marido; o tradicional aceno de bom dia pra vizinhança que também se apressava em cumprir seus rituais cotidianos; fazer o sinal da cruz ao passar em frente à Igreja de Nossa Senhora dos Ausentes e seguir em frente.

Mas, no percurso, imprevistos. A programação fugiu completamente do controle e a ameaça de chuva e de mais um dia preguiçoso virou a vida de ponta-cabeça.

Um dilúvio acabou com a casa, com a cidade e quase destruiu o estado todo. Mobilizou o país e chamou a atenção do mundo.

O marido, que trabalhava em casa, não botou fé na força das águas e quase ficou submerso, com as toalhas de crochê, as fotografias, as louças da bisa e todas as conquistas de uma vida. Os dois pequenos vira-latas subiram no telhado e acabaram num dos muitos abrigos montados de forma provisória pra atender os animais.

Entre tantos relatos tristes, fazem parte do grupo de “sortudos”, aqueles que “só contabilizaram perdas materiais”. As crianças querem saber quando vão ter acesso aos seus brinquedos novamente. A mãe não tem coragem de dizer a verdade ainda.

Não há mais brinquedos. A casa agora é um local inabitado, um terreno impróprio, um sonho desfeito. Vão se reerguer e continuar a história em outro canto, mas os laços formados ali foram arrancados, abruptamente, pela força da natureza.

Não há mais aceno de bom dia à vizinhança, nem sinal da cruz em frente à igreja. A escola não resistiu pra contar a história pras próximas gerações, que terão que se formar em outros endereços, a partir de outros laços. Não mais ali.

A vida recomeça do zero. Mas recomeça!

*Danielle Blaskievicz é jornalista, empresária e, como tantos brasileiros, sente-se impotente diante da catástrofe ambiental que atingiu o Rio Grande do Sul