Vidas importam

Wanda Camargo | assessoria@unibrasil.com.br

No recente comício em Uniondale, região metropolitana de Nova York, a fila para ouvir Donald Trump maravilhou-se com a aproximação de dois bonecos de papelão: uma deles trazia uma versão musculosa de Trump sem camisa com a tatuagem “defensor de pets” e um gato no ombro, o outro trazia uma reprodução um pouco mais realista dele cercado de vários bichinhos, com a frase “vidas de pets importam”.

Assim, ele tenta se reabilitar da afirmação caluniosa de que imigrantes estão se alimentando de animais de estimação das pessoas, espalhando o medo e a aversão mais intensa por aquelas pessoas que saem de seus países, muitas pressionadas pela fome ou perseguição política, para tentar a vida – com todas as dificuldades que isso implica – em territórios desconhecidos. Uma das mais cruéis faces desta alegação é que se dirigem particularmente aos haitianos, trabalhadores carentes e tidos como esforçados.

Os Estados Unidos preveem a falta de quase seis milhões de trabalhadores nos próximos anos, considerando a diferença entre a taxa de mortalidade e a população prevista de jovens que completaram 16 anos neste período, pois a baixa natalidade em países desenvolvidos não tem conseguido repor a população economicamente ativa, o que deve vir a causar colapso nos sistemas previdenciários.

Todas as teorias mais recentes que abordam o processo migratório dão maior atenção às questões econômicas e políticas envolvendo a migração em larga escala, pois, além de produzir etnicidade, políticas de reconhecimento, multiculturalismo e o pertencimento comunitário, influem decisivamente na produtividade do país que os recebem. O mundo tem se tornado uma sociedade plural, compostas por pessoas de diferentes origens étnicas e culturais; o não reconhecimento disso é o que gerou o preconceito a partir de 2010 depois do terremoto ocorrido no Haiti, o qual iniciou um grande fluxo de imigração haitiana para todos os países da América, incluindo o Brasil.

O Haiti, com quase dez milhões de habitantes tem a quase totalidade deles desempregados ou trabalhando informalmente e vivendo abaixo da linha da pobreza, o que estimula  imigração e contribui para as condições precárias  nos países de acolhida, pois a maior parte dos rendimentos é enviada para familiares que ficaram no país de origem.

Imigrantes haitianos fazem parte de um coletivo migratório que se move de forma involuntária e por questão de sobrevivência, por motivos econômicos, fragilidades estatais e dificuldades decorrentes de desastres naturais. A saída do Haiti surge como um modo particularmente importante de dar continuidade à vida, tendo em vista a falta de condições em seu país de origem que os coloca enquanto uma população em grande vulnerabilidade.

A crueldade e absoluta falta de empatia da extrema direita norte-americana, e não apenas da norte-americana, reflete-se de forma transparente, qualidade que execram, em afirmações como aquela de Trump, direcionada aos mais frágeis e necessitados mas tendo como alvo um eleitorado pouco esclarecido que apenas deseja um motivo para justificar seu preconceito e medo dos imigrantes, dos negros, dos indígenas, de todos aqueles que não são “brancos”, não dirigem caminhonetes gastadoras de combustível, não possuem armas de fogo…

As calúnias, as atuais fake News, sempre foram utilizadas politicamente; a técnica é conhecida: escolhe-se um “inimigo” que seria o culpado por todos os males que possam afligir o público que se deseja manipular – fome, guerra, peste, catástrofes naturais, derrotas desportivas, pobreza, desemprego – atribui-se a este inimigo a causa dos desatinos, mesmo os que não dependem de ação humana. Na Idade Média foram as feiticeiras, mais recentemente os judeus, na campanha política atual por Prefeituras e Câmaras Municipais são os “comunistas” ainda que não se saiba direito o que são, quem são, e como têm culpa formada. Em resumo, todos que não são “nós” são “eles” e, portanto, culpados.

Durante o período do Macartismo nos EUA, quando procurava-se identificar e punir os “maus americanos”, os famigerados comunistas, reflexo das rivalidades com a União Soviética, as crianças, e não apenas elas, tinham medo de comunistas embaixo da cama, os que comiam criancinhas. Na demência atual a dieta dos monstros mudou, de criancinhas para poodles e gatos, o ridículo é o mesmo.

Nas escolas, professores tem explicado: todas as vidas importam – de pets e de seres humanos.  

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.